Wednesday, January 31, 2007

Eduquês à solta

No Público de hoje, por Guilherme Valente:

Apesar das correcções e da pressão que, suponho ir verificando, o chefe do Governo tem exercido, a actual ministra não mexeu, nem ao de leve, em nada de essencial, isto é, não contrariou a infecção ideológica e pedagógica, alimentada por uma espécie de União Nacional dos "especialistas", que domina o ministério e sempre conseguiu impor-se ou bloquear os ministros

1.O que pensar da medida, agora prevista, de um só professor para todas as disciplinas no segundo ciclo do básico? Não ocorrerá logo a uma mente sensata que isso seria mais um passo na infantilização dos alunos, outra etapa na degradação do ensino, na desqualificação da prestação dos docentes? Não fala a ministra recorrentemente em querer obter resultados? Assim? Que professor, com que formação, dominará o conhecimento nas várias matérias para as poder ensinar com competência e sucesso? A não ser que os docentes tenham que saber apenas pedagogia e o domínio das várias matérias disciplinares não seja importante. De facto, como vários analistas têm referido e já foi mesmo chocantemente assumido por especialistas menos "políticos", para as teorias pedagógicas que dominam o sistema de ensino a transmissão e aquisição de conhecimentos parece ser irrelevante, esse parece não ser um objectivo nuclear da escola. Como pode a senhora ministra falar em obter resultados? E como os verificará?
A lógica e a coerência da medida agora prevista só pode ser mais uma manifestação do delírio cretinizador, que continua a comandar o sistema educativo, à revelia, agora, estou certo, do conhecimento e dos propósitos do chefe do Governo. Mais um combate que a opinião pública terá de travar?
Manifestando em todas as oportunidades a sua animosidade contra os exames, esta ministra quis, ou deixou que se pretendesse, acabar com o exame de Português, lembram-se? E a opinião pública obrigou-a a recuar. Depois seguiu-se o escândalo incompreensível dos exames de Química. Ontem foi a TLEBS; agora o fim do exame de Filosofia (não me lembro de decisão pedagógica e cívica tão ignorante e insensata como esta, a não ser, mais uma vez, que fosse de propósito); amanhã a alteração aparentemente absurda do regime de docência no básico, que será, de todos os erros, o que é mais imperativo travar.
Mas poderemos estar sempre atentos a tudo, tantas são as medidas aberrantes, mas muitas mais discretas, não tendo, por isso, a cobertura dos media que alerta os cidadãos? Poderá tal situação continuar, a opinião pública a ter recorrentemente de se mobilizar para corrigir os erros da ministra? Inaceitável forma de governar: a ministra pensa, ou avaliza e promove medidas catastróficas, a opinião pública reage e o ministério recua. É a opinião pública a governar pela ministra, uma necessidade que, todavia, se pode deduzir, infelizmente, das suas próprias palavras:
Não lavou a senhora ministra as mãos da sua responsabilidade na referida "bronca" do exame de Química, dizendo que não tinha que conhecer nem se metia no que era da responsabilidade dos especialistas? Não afirmou, noutra ocasião: "Acho que as questões técnicas da pedagogia não devem vir para a esfera da actividade política"? E deu mesmo um exemplo, de igual brilho: "Seria o mesmo que o ministro da Saúde dizer qual a melhor técnica de diagnóstico para um problema de saúde." Acontece, diga-se de passagem e sem esperança de convencer quem possui ideias tão elaboradas e as sustenta com tal indiferença pela crítica, que o ministro da Saúde não faz, felizmente, outra coisa, isto é, assume a responsabilidade política pela qualidade e a eficácia de todas as acções do seu ministério, escolhendo os especialistas em que se apoia e acompanhando e avaliando o resultado da sua intervenção. De resto, se em cada operação nos hospitais morresse um doente - e é algo idêntico o que desde há muitos anos está a acontecer na nossa escola -, o que faria o ministro Correia de Campos? Diria, como a ministra, que o problema é dos técnicos e, subentende-se o seu recado, que nós cidadãos não teríamos nada com isso?
Adivinha-se o desejo da ministra, a mensagem subliminar nas suas palavras, mas arrepia imaginar o que seria se todos pensássemos como ela, imaginar que pudéssemos estar no país em que, parece podermos concluir, a senhora gostaria de viver.
E quem são esses especialistas que a senhora ministra segue, de um modo que lembra a atitude do iletrado ignorante que toma como verdade inquestionável o disparate mais absurdo pelo facto de o ter num livro ou ouvido da boca de um especialista qualquer? São precisamente os "especialistas" que conduziram à tragédia educativa que já ninguém nega. Parece não haver outros para a senhora ministra, deuses únicos que segue acrítica e, talvez, temerosamente.

2. Foi chocante a TLEBS? Então leia-se o Referencial de Competências, Chave para a Educação e Formação de Adultos, Nível Secundário (o título é logo uma pérola), agora publicado pelo ministério.
Um documento que não posso acreditar tenha sido visto pelo primeiro-ministro. Se o tivesse lido não o deixaria publicar. Um longuíssimo discurso - provavelmente ninguém terá pachorra para o ler até ao fim - que não poderá suscitar, enquadrar, orientar, qualquer realização com resultados efectivos. Pelo contrário, é mais uma das inutilidades retóricas do costume que, como a generalidade das toneladas de papéis elaborados no ministério, só servirá para complicar e bloquear o sistema.
Seria hilariante se não fosse trágico.

3. Apesar das aparências, enganaram muito boa gente, a intervenção da senhora ministra no plano administrativo e laboral, dita corajosa, mas na minha opinião cega e desastrosa, que resultados teve de facto? Uniu os sindicatos como nunca estiveram antes, reaproximou deles a generalidade dos professores, legitimando a acção sindical que, durante todos estes anos, os fez cúmplices (por vezes contra natura da ortodoxia filosófica ou ideológica de que o mais importante deles se reivindica) da tragédia educativa que corrói e inviabiliza o país, levando ao adiamento da sua reconversão - que já se vislumbrava - no sentido de passarem a desempenhar, finalmente, o papel regulador que deve ser o seu, contributo inestimável para a segurança dos profissionais, a mudança do ensino e o progresso do país.
Apesar das correcções e da pressão que, suponho ir verificando, o chefe do Governo tem exercido, a actual ministra não mexeu, nem ao de leve, em nada de essencial, isto é, não contrariou a infecção ideológica e pedagógica, alimentada por uma espécie de União Nacional dos "especialistas", que domina o ministério e sempre conseguiu impor-se ou bloquear os ministros.
Marçal Grilo, Oliveira Martins e Júlio Pedrosa não varreram o eduquês, mas a sua estatura intelectual e académica, experiência profissional, espírito crítico e sensatez permitiram-lhes travar várias das manifestações mais delirantes da praga. Agora, pelo contrário, parece-me mesmo haver uma identificação da ministra à ideologia e à nomenclatura ou então uma subordinação como nunca se verificou antes. É o que parece transparecer de afirmações suas.
Mas julgo vislumbrar a mudança no horizonte. Este actual estádio supremo do eduquês deverá ser também o seu estertor. E julgo ter boas razões para pensar que a mudança vai acontecer com José Sócrates. Não é possível adiar mais e ele percebe onde está a essência do problema e acredito, e apoio, a sua atitude reformadora. Enganou-se com a ministra, mas estará a verificar o engano e irá corrigi-lo. Os próximos resultados vão ser piores e o chefe do Governo sabe que não haverá desenvolvimento nem diminuição das desigualdades sem outra escola, sem um ensino que desafie alunos e professores, que qualifique e forme, que realize as diferentes potencialidades de todos. Editor

Tuesday, January 30, 2007

Neta da última "bruxa" presa no Reino Unido em campanha para limpar o nome da avó

Do Público de hoje:

"Esteve nove meses na cadeia e foi visitada por Winston Churchill; morreu em 1956.

Helen Duncan nasceu na Escócia em 1827. E nos anos 40 do século passado tornou-se numa médium famosa. Conta-se que entre os seus clientes estavam várias personalidades, entre as quais Winston Churchill. Agora, 50 anos depois da sua morte, uma neta sua dá a cara por uma campanha destinada a limpar o nome de alguém que a justiça condenou com base numa lei do século XVIII: Helen Duncan foi uma das últimas mulheres a serem presas por bruxaria, no Reino Unido.

Chama-se Mary Martin a neta de Helen Duncan. Tem 72 anos e é responsável por uma petição (www.prestoungrange.org/helenduncan) que reclama um perdão póstumo para a avó, que morreu em 1956. "Ela não cometeu nenhum crime", diz, em declarações à Associated Press (AP).

Mary Martin, que vive na Escócia, conta como quando era pequena era gozada pelos colegas de escola. "Diziam: "És a neta de uma bruxa." Mas ela era apenas uma mulher com um dom." Na cidade onde vivia, o caso que envolveu a sua avó caiu que nem uma bomba. Mary nunca se livrou do estigma de ter uma avó "bruxa".

Recentemente, escreveu ao ministro do Interior britânico, John Reid, e pediu-lhe uma audiência. E tem-se desdobrado em entrevistas para publicitar a sua campanha. Várias centenas de pessoas já assinaram a petição, assegura a AP.

A história de Duncan foi recentemente contada numa reportagem do diário britânico The Guardian. Curiosamente, os problemas da famosa médium começaram durante a II Guerra Mundial, por causa de um navio: o HMS Barham.

O barco tinha-se afundado, mas as autoridades britânicas não revelaram de imediato o facto para que a tragédia não desse cabo do moral colectivo. Contudo, Duncan falou do acidente - contou aos pais de um marinheiro que o seu filho teria morrido a bordo do navio que se afundara. Considerou-se então que Duncan e os seus poderes misteriosos estavam a pôr em causa a segurança pública, numa altura em que as autoridades militares preparavam em segredo o Dia D.

Em Janeiro de 1944 a polícia entrou-lhe pela casa. Foi acusada de prática de "magia negra" e presa durante nove meses com base numa lei de 1735 - a primeira acusação do género num século, segundo conta o The Guardian.

Duncan cumpriu pena num presídio no Norte de Londres, onde chegou a ser visitada pelo primeiro-ministro Churchill, que, ainda de acordo com o jornal, considerava a sentença uma "patetice".

De resto, em 1951 Churchill acabaria por revogar essa lei do século XVIII que punha atrás das grades as alegadas "bruxas". Mas Helen Duncan morreu com o peso da acusação que a levou à cadeia."

Wednesday, January 17, 2007

Primeiro filosofar

No Público de hoje, Eduardo Prado Coelho

o fio do horizonte


Éverdade que a tradição cultural portuguesa sempre foi no sentido da história e não da filosofia. E que mesmo no domínio da filosofia foi a marca da filosofia francesa que predominou (Bachelard, como exemplo) e não a filosofia de cariz analítico (Popper). Daí que certos nomes famosos da filosofia contemporânea nunca tenham sido traduzidos (Quine ou Michael Dennett, também por exemplo, mesmo que alguns tenham sido objecto de extensos e bem organizados trabalhos: Sofia Miguéis é um caso).

De qualquer modo, a recente ideia do Ministério da Educação de manter o ensino da Filosofia, mas não o tornar obrigatório para o exame final parece-me desastrosa. No Expresso, António Guerreiro escreveu um magnífico texto sobre este tema. As consequências são múltiplas: os departamentos de Filosofia tenderão a fechar por escassez de participantes. E teremos esta aberração de uma Faculdade de Ciências Sociais e Humanas não ter Filosofia!

Deveria apoiar-se todo o sentido do secundário nessas duas grandes disciplinas da arte de pensar: a Matemática e a Filosofia. Elas são complementares, por muito que pensemos que são antagónicas. Essa complementaridade é o essencial da filosofia cognitiva dos nossos dias. Depois cada um reforça uma das múltiplas inteligências (Howard Gardner) que possui: uns pensam com números, outros com imagens (cinema e televisão), outros ainda com sons (música e dança). O que é que estamos a verificar com as actuais e infelizes disposições do Ministério da Educação nesta matéria?

Vemos que é uma concepção do mundo para a qual a filosofia estabelece uma fronteira de resistência. João Lobo Antunes fala com extrema clareza na importância da neurofilosofia (fê-lo de um modo extremamente veemente no programa Câmara Clara de Paula Moura Pinheiro). Nuno Crato, esse combatente indomável contra o "eduquês, considera importantes as relações entre a ciência, em particular a matemática, e a filosofia.


A que é que se resiste? A algo de particularmente nefasto que resulta daquilo a que de um modo sumário se chama "economicismo". Ao ensino superior recomenda-se hoje que sirva o mercado e que se concentre nas disciplinas que apontam nesse sentido. É triste, é mesmo desolador. Vamos ter uma filosofia em Portugal que se restringe a pequenos círculos de amigos que pretendem falar de metafísica: nem sequer é Carnap contra Nietzsche. É Berlusconi que espreita a cena.

É claro que todos nós sabemos que a filosofia é uma coisa, que, se em certos aspectos pode ser útil (nas questões de ética, por exemplo, fundamentais para entendermos os mecanismos da corrupção), noutros é decerto totalmente inútil. O domínio da metafísica vai nesse caminho: tudo aquilo que parece resposta é a rampa de lançamento para uma interrogação. Dizia Valéry que a filosofia consiste em pensarmos que aquilo que foi pensado não foi suficientemente pensado.

Falar nisto tem uma razão de ser: nós sentimos que estamos hoje num processo de barbarização que parece sem fim. Tanto mais grave entre nós quanto a modernidade nunca chegou a enraizar-se suficientemente. Mas vemos indícios disto em todos os domínios: desde Filipe la Féria no Teatro Rivoli em nome do público que vai vir meses a fio (e, no entanto, sempre que lá fui vi salas com bastante gente) à televisão que aposta em telenovelas, umas melhores outras piores, mas que relega os programas culturais (como, por exemplo, esse apaixonante diálogo entre Agustina Bessa Luís e Maria João Seixas) para os doentes de insónias, às salas de espectáculo - talvez com a excepção das artes visuais.

Donde, é preciso resistir. Estará o Ministério da Educação ainda em condições de alterar a sua decisão?

Thursday, January 4, 2007

A execução de Saddam Hussein

José Pacheco Pereira hoje no Público:

"Antes de se falar da morte de Saddam, o que "fala" nas imagens que vimos na televisão é a morte. No nosso mundo liofilizado europeu, a Ceifeira vê-se pouco. É escondida nos hospitais, disfarçada em quartos obscuros, cuidadosamente retirada da nossa vista. Ali, numa qualquer instalação policial ou militar, com o ar frio do cimento nu, às horas perigosas da madrugada, um homem como nós defronta tudo. Como nós. Ali, naquele momento, não há qualquer distinção. É ele e somos nós. O morto que ainda está vivo, anda, fala. Dead man walking, como se diz nos corredores da morte texanos.

Não há diálogo com a Ceifeira, não há palavras que possam ser ditas. Saddam portou-se com dignidade, embora eu não saiba bem o que significa esta frase, ou sequer se tem algum sentido dizê-la. Tivesse ele chorado, implorado, ou exibido um medo evidente e haveria alguma diferença? Havia para nós, o medo dele seria ainda mais o nosso. Assim como foi, alimenta a nossa vaidade, de que possamos também defrontar assim a Ceifeira e por isso ter essa "dignidade", forma última da nossa humanidade, prometeica a seu modo arrogante, diante do executor humano e divino.

Os brutos e os cruéis também podem ser dignos face à morte, isto, para quem saiba alguma coisa de história, não é novidade nenhuma. Aquele homem ali no cadafalso não era um homem comum, nem a morte lhe era alheia. Bem pelo contrário, Saddam matou, mesmo com as suas mãos, e deixou atrás de si um rastro de assassinatos, crimes e violências que o colocam entre os grandes criminosos políticos do século XX, numa indiferença brutal.

Naquela sala, ele estava no seu ambiente, ele melhor que ninguém percebia todos os papéis, dos carrascos, da vingança tribal e religiosa, da pura habituação à morte violenta, o convívio próximo de muitos iraquianos com a Ceifeira, mais que próximo, íntimo. Se alguma coisa o podia surpreender, era até a relativo carácter asséptico daquela execução, tão encenada, limpa, sossegada. As coisas depois perderam um bocado o pé, com os insultos e os gritos, mas tenho a certeza que foi incomensuravelmente mais pacífica do que os hábitos da casa.

Não foi o espectáculo que foi brutal, foi a morte, como é sempre, aqui com a agravante de ter sido decidida por homens e não pelo fluir do destino. Se há adquirido civilizacional numa parte do "Ocidente", é que os nossos governantes máximos, políticos, juízes, polícias, perderam o direito de decidir sobre a vida e a morte dos que os afrontam, quer a eles, quer à sociedade. O fim da pena de morte é um adquirido crucial, frágil como todos, mas para já garantido em grande parte da Europa, embora mais recentemente do que se pensa.

Mesmo assim, o assassinato político que acompanhou a nossa história, e que ainda há poucos anos matou Ceausescu e a mulher (esqueceram-se dos Ceausescu os jornalistas que repetiam na sua ignorância que no século XX "nenhum" ditador conheceu o destino de Saddam, pensando certamente que foi esta a "justiça" que faltou a Pinochet, que muitos que choram por Saddam desejavam ver morto), parece uma excepção, não o sendo. Que o digam os presidentes tchetchenos.

Mas uma coisa é ser radicalmente contra a pena de morte, como sou, outra é usar, com a "má fé" que Fernando Gil tão bem retratou, essa condenação como mais um argumento contra a invasão americana do Iraque. A discussão da invasão americana e dos sucessos que se lhe seguiram é hoje tão dominada pela irracionalidade e pelo "pensamento único" que nos impede pura e simplesmente de pensar.

Aliás, nunca encontrei melhor exemplo do que possa ser o "pensamento único" do que a completa unanimidade agressiva sobre os eventos do Iraque. Bastava sequer ouvir a cena macabra dos últimos momentos de Saddam, para perceber como para os iraquianos presentes, entre os quais o próprio Saddam, o que está em jogo está muito para além do binómio ocupação-resistência e já lá estava muito antes da invasão."

Se se quer discutir a sério o papel político da execução de Saddam, então é preciso em primeiro lugar libertarmo-nos de usar a condenação da pena de morte como argumento, porque ele é em si muito irrelevante no Iraque, nem muda nada que não estivesse já mudado e infelizmente para pior. A execução de Saddam foi mais um episódio de uma guerra civil larvar que atravessa o Iraque, e é como tal interpretada pelos iraquianos, que a festejaram do lado xiita e que a condenaram do lado sunita, apenas e só nesse contexto.

E é por ter sido mais um episódio da guerra civil que a desaparição física do ditador em nada contribui para a acalmia do país, e muito menos para a democracia. Mostra também como os americanos, em particular, perderam o controlo do processo e têm um dilema crescente: ao passarem o poder para os iraquianos, tem que aceitar uma política interna cada vez mais dominada pelo conflito civil entre xiitas e sunitas, com os curdos a desejarem estar noutro mapa, de preferência com o petróleo a que acham ter direito.

Se não se está de "má fé", então tem que se discutir as alternativas para a coligação após a invasão. Os EUA e os seus aliados sabiam que iam defrontar no Iraque o problema de capturar vivos os principais dirigentes do regime baasista. Não era nada que não tivesse vários precedentes recentes, como o da Alemanha e Japão no fim da II Guerra, ou dos dirigentes sérvios na guerra jugoslava.

O precedente alemão e japonês foi resolvido com tribunais como o de Nuremberga, que acabaram na condenação à morte de muitos altos dignitários nazis, ao exemplo do que aconteceu em muitos outros países da Europa, onde uma vaga de julgamentos ou de decisões extrajudiciais levaram à execução, muitas vezes sumária, de milhares de colaboradores dos alemães.

Se no Iraque fosse seguido o mesmo exemplo, seriam americanos e os outros membros da coligação a julgar Saddam não se sabendo com que base jurídica. Se fosse com base na legislação nacional iraquiana, ou na base da legislação de Nuremberga, Saddam seria quase de certeza condenado também à morte.

Havia a alternativa de o julgar num tribunal como o de Haia, para onde foi enviado Milosevic. Mas o consenso que havia para a Jugoslávia não existia para o Iraque e um tribunal com um apoio internacional dúbio seria sempre visto como um tribunal americano disfarçado. Era provável que neste caso, se o julgamento fosse na Europa, Saddam escapasse com vida, mas ficaria preso até ao fim dos seus dias. Não custa imaginar o clamor que, quer a solução tipo Nuremberga, quer a de um tribunal internacional levantariam, para além de poder reforçar a ideia de uma ocupação estrangeira permanente do Iraque.

Havia uma outra solução, a de levar Saddam para os EUA, como aconteceu com Noriega, mas também aí não seria difícil imaginar o clamor internacional e o impasse jurídico a que se chegaria, pois também na lei americana os crimes de Saddam implicavam a pena de morte.

Apesar de tudo, visto pelo princípio dos "prognósticos só no final do jogo", qualquer destas soluções seria melhor, agora que sabemos o que aconteceu. Mas é preciso entender que os motivos dos americanos, como acontece com algumas das maiores asneiras cometidas no Iraque, resultam de uma mistura de boa vontade ingénua e negligência na análise cuidada dos riscos. Ninguém que quer a democracia pode deixar de admirar a enorme ingenuidade americana, que é o melhor da América, e nalguns caos, o pior.

Vistas as coisas hoje percebem-se as intenções dos EUA: usar o julgamento de Saddam como uma catarse nacional para o Iraque, permitir um módico de justiça (e por muitas críticas que se possam fazer ao julgamento, ele esteve a milhas do que é habitual na região) e oferecer aos iraquianos um ponto zero de partida para a sua democracia. Só os americanos podiam alguma vez pensar nisto a sério, mas não há razão para duvidar das suas intenções, de que, bem sei, está o inferno cheio.

Havia, aliás, uma maneira não americana, nem ingénua de pensar esta questão. Estaline era especialista nessa maneira, que certamente seria muito mais realista e eficaz: a de que "acabando-se com o homem, acabava-se com o problema", mas não me parece que seja esta a alternativa em que alguns críticos do que se passou estejam a pensar. Historiador

O Ministério pimba da Educação

Hoje, no Público, por Desidério Murcho:

"A propósito do livro Desastre no Ensino da Matemática: Recuperar o Tempo Perdido, organizado por Nuno Crato, Edições Gradiva, 2006

s Encontros de Caparide foram uma louvável iniciativa do Ministério da Educação, que pretendia ouvir as sociedades científicas sobre o ensino de algumas disciplinas fundamentais (Português, Matemática, Filosofia) cujas deficiências a nível de currículos são gritantes. Foram tempos áureos, em que um ministro da Educação, David Justino, se preocupava com questões relacionadas com o ensino e não apenas com questões laborais e meramente organizacionais.

O cerne da excelência do ensino é a solidez científica dos currículos e a formação científica dos professores, mas as discussões públicas nacionais sobre educação nunca abordam estes aspectos centrais. Até parece que tudo o resto é que é a finalidade do ensino, quando na verdade são apenas meios.

Dos Encontros de Caparide resultaram dois livros. O primeiro, dedicado à Filosofia (Para a Renovação do Ensino da Filosofia, Plátano), foi publicado no início deste ano. E este volume, dedicado à Matemática, surgiu agora. No primeiro caso, trata-se de discutir uma proposta concreta que visa melhorar a qualidade científica e didáctica dos programas de Filosofia do ensino secundário. No segundo, trata-se de discutir questões pedagógicas gerais que afectam não apenas a disciplina de Matemática, mas todas as outras.

As desastrosas doutrinas pedagógicas que imperam em Portugal, algo pós-modernaças e "construtivistas", são elitistas - apesar de fingirem o contrário - e têm por denominador comum um ódio visceral às Ciências, à Matemática, à História, à Gramática, à Literatura, à Filosofia; enfim, a tudo o que se pareça com verdadeiros conteúdos escolares.

Em vez de conteúdos, fala-se de competências - como se pudesse haver competências sem conteúdos. E em vez de se distinguir cuidadosamente o que são verdadeiros conteúdos escolares do resto, procura-se transformar a escola numa espécie de entretenimento com ademanes de educação para a cidadania - tudo, menos ensinar seriamente Matemática ou Geografia ou Filosofia ou História ou Música. A origem destas ideias remonta a Rousseau e à fantasia do bom selvagem, e o que se visa é acabar com as Ciências, as Artes e as Letras, pois tudo isso corrompe a criança, que é presumivelmente mais feliz a ver televisão e a jogar à bola.

Claro que tudo isto é fantasioso porque para andar a entreter os meninos com conversa fiada não é preciso escola: as crianças divertem-se muito mais fora da escola, e no mundo de hoje não têm sequer tempo para se aborrecer.

Fantasioso é também querer certificar manuais escolares quando os programas das disciplinas, que foram certamente certificados pelo próprio ministério, são o locus classicus do erro científico e do disparate pedagógico. Em muitos casos, para que um manual seja cientificamente bom e pedagogicamente adequado, é obrigado a não respeitar o programa.

Isto porque os programas se degradaram de tal maneira ao longo dos anos que, hoje em dia, ao ler um programa curricular de Filosofia ou Português ou outra disciplina, uma pessoa pergunta-se onde está a Filosofia ou o Português. Os pedagogos ministeriais impuseram ao país a original perspectiva de que se pode ensinar Português sem Português, Filosofia sem Filosofia e Matemática sem Matemática.

Ao mesmo tempo que os estudantes são massacrados com inúmeras disciplinas vácuas sem qualquer centralidade escolar, não têm uma educação básica em Música, nem em Literatura ou Filosofia ou Geografia. Se um estudante de 15 anos quer saber alguma coisa sobre estas coisas, tem de o fazer fora da escola. Mas se quiser brincar aos índios, pode fazê-lo nas chamadas "actividades educativas", em substituição das aulas de Matemática. É esta a educação pimba que temos.

Mas não é esta a educação que a sociedade, no seu todo, quer. Os pais, com maior ou menor formação escolar, queixam-se de que a escola não ensina. Os miúdos cantam, com razão, que "na escola nada se cria, nada se transforma, tudo se perde". Os professores andam há anos a denunciar este estado de coisas.

Mas os pedagogos ministeriais vão passando de governo para governo, conseguindo ora mudar a Gramática toda, prejudicando gravemente a possibilidade da excelência do ensino do Português (se antes poucos professores sabiam e ensinavam Gramática, agora ainda menos - ou será que a ideia é mesmo essa?), ora suspender documentos que introduzem conteúdos científicos sérios num programa que carece deles (como foi o caso da badalada suspensão das Orientações de Leccionação do Programa de Filosofia). A ideia de trabalhar pelo bem do país, pela excelência do ensino, em defesa do interesse público, é alheia a estes originais pedagogos.

Numa cultura como a portuguesa, na qual nunca se valorizou realmente o conhecimento - afinal, no tempo da outra senhora, o conhecimento era um ornamento social para exibir em conversas amenas enquanto se tomava chá -, compete à escola entusiasmar os jovens e a sociedade, dando-lhes uma percepção clara do valor intrínseco do conhecimento.

Mas quando é o próprio ministério da educação que não acredita no valor intrínseco do conhecimento, dificultando cada vez mais o estudo aos muitos professores sérios que temos por esse país fora, afogando-os em trabalho burocrático e em horas contabilizadas nas escolas só para marcar ponto, que se pode esperar do nosso futuro?

Como poderemos recuperar o tempo perdido, tanto no que respeita ao ensino da Matemática como no que respeita às outras disciplinas? Seja qual for a estratégia, o primeiro axioma tem de ser este: o conhecimento tem valor intrínseco, em si e por si, e é do maior interesse público protegê-lo e transmiti-lo, e ensinar a produzi-lo - e só a escola pode fazer isso, ainda que infelizmente o tenha de fazer contra o Ministério pimba da Educação.
Professor de Filosofia