Thursday, March 15, 2007

O novo eixo do mal

O novo eixo do mal
15.03.2007, Esther Mucznik
O pacifismo a qualquer preço é hoje o principal credo europeu
1Israel e o Irão, os EUA e a Coreia do Norte são, por ordem decrescente, os países mais mal vistos do planeta, os que "pior influência exercem", segundo os resultados de uma sondagem a 28 mil pessoas de 27 países, entre os quais Portugal. A sondagem, realizada para a BBC entre Novembro e Janeiro, pedia às pessoas que classificassem a influência de 12 países: Canadá, China, Coreia do Norte, Reino Unido, EUA, França, Índia, Israel, Japão, Rússia, Venezuela.

Israel é o "vencedor", com 56 por cento de opiniões negativas e apenas 17 por cento de positivas. Seguem-se o Irão, com 54 por cento, os EUA, com 51 por cento, e a Coreia do Norte, com 48 por cento. Em contrapartida, as opiniões mais positivas vão para o Canadá, o Japão, a União Europeia e a França. Pelo meio, fica a China, com mais respostas positivas do que negativas, a Venezuela, com empate de opiniões, e a Rússia, com uma avaliação ligeiramente mais negativa.

Não deixa de ser significativo que países europeus como a Alemanha, a França e a Grã-Bretanha estejam entre os que pior opinião têm sobre a influência de Israel no mundo, opinião que se estende, embora de forma mais suavizada, também aos EUA.
Como interpretar estes resultados? Como interpretar esta visão que julga com os mesmos critérios e coloca praticamente em pé de igualdade regimes ditatoriais e fomentadores do terrorismo, de um lado, e sociedades livres e democráticas, do outro?

É evidente que a natureza das perguntas e o momento em que são feitas condicionam parcialmente as respostas. O estudo levado a cabo pela GlobeScan em parceria com a Universidade de Maryland foi iniciado poucos meses depois da guerra do Líbano, com a memória das pessoas ainda cheia das imagens de destruição e violência do Líbano. Mas isto não invalida a principal conclusão desta sondagem: para a grande maioria dos entrevistados não há relação nenhuma entre a paz e a segurança de um lado, a liberdade e a democracia do outro. Em termos de ameaça mundial, os regimes políticos equivalem-se.

Na opinião do director do estudo, Steven Kull, "as populações tendem a ver negativamente os países cujo perfil está marcado pelo uso da força (...) e positivamente os que mantêm uma relação pacífica com o mundo". Ninguém duvida, com efeito, que a guerra é o pior dos pesadelos e os povos, particularmente na Europa, têm dela uma memória dolorosa e traumatizada. Mas a questão não está aí. Está, sim, no alvo do dedo acusatório - Israel e EUA -, quando debaixo dos nossos olhos se desenrola a mais bárbara, a mais cobarde e a mais assassina de todas as guerras: a guerra contra os civis.

No Iraque, no Afeganistão, na Tchetchénia, no Darfur, no Magrebe, são utilizados os meios mais selvagens e cruéis: atentados em hospitais por terroristas disfarçados de pessoal médico; bombas nas universidades contra estudantes, nas mesquitas contra fiéis, nos lugares santos contra peregrinos; devastação à bomba do coração cultural de Bagdad onde os livros também são um alvo; cadáveres mutilados por torturas hediondas atirados para valas comuns; raptos, decapitações e agora, supremo requinte, aparição do terrorismo químico, à base de cloro - irmãos contra irmãos, árabes contra árabes, muçulmanos contra muçulmanos, não poupando velhos, mulheres e crianças.

Quem protesta contra esta guerra? Ninguém. Ela deixa-nos indiferentes, cegos que estamos pela "evidência" de que tudo é culpa de Israel e dos EUA. Impune, a barbárie pode continuar: de todas as formas ela será sempre atribuída a americanos e israelitas. Nem os europeus, nem muito especialmente o mundo árabe e muçulmano têm a coragem de denunciar o que se passa. Preferem enganar e serem enganados, diabolizando Israel e os EUA. O ódio a Israel e à América oculta a barbárie do nosso tempo.

Os países árabes moderados temem represálias dos seus grupos integristas e ser acusados de fazer o jogo do grande e do pequeno Satã. E os europeus, o que temem? Os europeus têm medo. Medo da guerra, medo do terrorismo, medo das "suas" comunidades islâmicas. Consideram o Irão uma ameaça, mas receiam mais o confronto do que a própria ameaça. "Enquanto os israelitas subscrevem a máxima "Nunca mais", a dos alemães é "Nunca mais a guerra"", afirma o alemão Stephan Vopel. O pacifismo a qualquer preço é hoje o principal credo europeu.

2É por isso que não posso deixar de encarar com cepticismo o repto, apoiado pelo PÚBLICO, que nos propõe o historiador inglês Timothy Garton Ash, ao sugerir a construção de uma "nova narrativa europeia" com base nos valores da liberdade, da paz, do respeito pela lei, da prosperidade, diversidade e solidariedade. Quando vemos que uma ditadura como a de Teerão, em oposição frontal aos valores acima classificados como europeus, é considerada menos perigosa para o mundo do que Israel; quando vemos que países "livres" e "democráticos" como a Rússia, China, a Venezuela e a Coreia do Norte obtêm uma opinião mais favorável do que os EUA, não me resta a menor ilusão da vontade, nem da capacidade europeias de construir "essa nova narrativa". Parece-me, sim, que a Europa continua presa aos fantasmas do passado, projectando uma imagem de si própria que não é capaz de assumir na prática, mirando-se a um espelho deformado que lhe devolve uma imagem do que ela gostaria de ser, mas não é.

E, enquanto se mantiver uma equivalência política e moral entre países onde os direitos do homem são por vezes violados - o que obviamente não os desculpa - e aqueles onde essa violação é a sua própria natureza e base de sustentação, não acredito que a Europa seja capaz de combater pelos valores acima descritos. Hoje, a "narrativa" europeia resume-se a três palavras: sossego, segurança e bem-estar. Para si própria, naturalmente...

Hagiografia da mediocridade

O estilo e a substância
15.03.2007, Constança Cunha e Sá
O estilo do primeiro-ministro confirma apenas a sua falta de substância
Em Portugal, há uma suave combinação entre o poder e a arrogância que leva invariavelmente ao mito e à hagiografia. Em 1990, quando o cavaquismo decidiu vender uma imagem diferente do chefe, o Expresso deu à luz um trabalho de fundo, sob um título auspicioso: A história do menino Aníbal. Como mandam as regras da propaganda, A história do menino Aníbal oferecia-nos "o retrato de um vencedor" e o percurso de um "predestinado" que "o acaso" empurrara para a política, a bem da modernização do país e da felicidade dos portugueses.

A biografia, recheada de pequenos e coloridos episódios, revelava um "novo" Cavaco Silva, surpreendentemente humano (havia dúvidas sobre a matéria!) nos seus pequenos prazeres e nas suas inocentes "tropelias". Para deleite de todos os fiéis, ficou-se a saber que, por trás do rosto esquálido e austero do primeiro-ministro, havia um "Aníbal" traquinas que gostava de pingue-pongue e de matraquilhos e que subira a pulso na vida.

Ungido pelo mérito, o rapaz pobre de Boliqueime, que fazia parte dos "costeletas" (por oposição ao grupo privilegiado dos "bifes"), acabara por se transformar num mago da economia, com doutoramento a preceito e provas dadas no desprezível mundo da política. Na altura, quando o regime celebrava a existência de um "novo português" que se distinguia pela "vontade de vencer", o exemplo de Cavaco Silva, educado no esforço e na disciplina, era a confirmação de um sonho que animou esses excepcionais anos de falsa prosperidade.

Apesar da sua aridez e da limitação dos seus horizontes, a história do "menino Aníbal" tinha, apesar de tudo, um sentido que ultrapassava a mera glorificação do chefe e do seu grandioso "destino". Entre os sacrifícios da infância e o posterior brilho da academia, a biografia não deixava de encerrar o essencial do cavaquismo. Ou, dito de outra forma, o essencial de uma velha e recorrente tradição nacional que privilegia o esforço e o mérito em detrimento dos "interesses" mesquinhos dos partidos, que defende o primado da competência sobre as subtilezas da ideologia e que, em última análise, se baseia na superioridade da economia face às "intrigas" em que se entretém a política. Neste sentido, o retrato de Cavaco Silva é também o retrato de um país que procurou sempre fugir às suas responsabilidades através dos bons ofícios de um qualquer salvador que o resgatasse do seu proverbial atraso e da sua irremediável pobreza.

O que impressiona na biografia do eng. Sócrates, publicada, este fim-de-semana, pelo semanário Sol, é o imenso vazio em que se afundam as inúmeras qualidades atribuídas ao biografado. Em vinte páginas de prosa, ao longo das quais vamos assistindo ao harmonioso desenvolvimento do pequeno Zezito, não há um pormenor que o diferencie, um traço que o caracterize ou uma ideia que o distinga - e muito menos algo que o determine à nascença para o exercício do poder, como assegura o título escolhido pelo semanário para coroar esta hagiografia da mediocridade.
Na história do "menino Zezito", não há esforço, nem sacrifício.

Também não há proezas académicas. Nem feitos profissionais. O bacharelato no ISEC - que tantas dúvidas tem levantado - é completado, vinte anos depois, quando já se encontrava no Governo do eng. Guterres, com uma obscura licenciatura, na Universidade Independente.

Pelo caminho, e dando provas da sua vocação para a política, mergulha, com o amigo Jorge Patrão, "nos meandros socialistas da região". Ou seja, envolve-se nas pequenas guerras do aparelho, onde gasta o melhor dos seus dias e inicia a sua fulgurante carreira.

Em 1987, depois de se ter enfiado no sótão do eng. Guterres e numas intrigas de maior alcance, chega finalmente ao Parlamento, onde viceja discretamente durante os anos do cavaquismo. Ao contrário do que a sua "coragem" e "determinação" poderiam indiciar, José Sócrates, esse estadista de última hora, foi sempre um homem do aparelho, um cacique local que cresceu nos jogos partidários e se distinguiu nos golpes de bastidores.

Antes de assentar na política, não deixou de fazer umas breves incursões profissionais. Em 80, deu aulas de Matemática no Liceu da Rainha D. Leonor. E, um ano mais tarde, arranjou um "posto" na Câmara Municipal da Covilhã, onde se distinguiu pelo "estilo", fugindo, como diz o jornal, ao "estereótipo do senhor engenheiro" que ele, para todos os efeitos, não era. Mas usava "calças encarnadas" - o que já então revelava uma aversão às regras da burocracia que se veio a corporizar, mais tarde, na apresentação do programa Simplex.

É com este extraordinário curriculum que chega, em 95, ao Governo, pela mão do eng. Guterres, de quem foi sempre um solícito boy. Mantém-se firme, ao seu lado, até ao fim, quando o seu tutor político abandona as funções de primeiro-ministro depois de ter deixado, segundo as suas próprias palavras, o país "à beira do pântano". Uns anos mais tarde, surge a consagração mediática, com um frente-a-frente, na RTP, com Pedro Santana Lopes, uma das grandes estrelas desse restrito firmamento. Diz este último que o conhece como ninguém. E acrescenta: "Há duas pessoas na política que perceberam o meu método e, nalguns aspectos, seguem os meus passos: o Carrilho e o Sócrates." Por uma vez, uma pessoa sente-se tentada a dar-lhe razão. O estilo do primeiro-ministro confirma apenas a sua falta de substância.