Friday, December 8, 2006

Um ministério?

No Expresso de hoje, o seguinte texto de Joaquim Manuel Magalhães:

"Quando andava a estudar nos dois últimos anos do liceu (os 6.º e 7.º), aqueles a seguir aos quais poderíamos ingressar na universidade, estudei Literatura Portuguesa. O 6.º ano foi das Cantigas Medievais até não sei onde, rebentando-nos a cabeça com sintaxes.

A senhora morreu ou mudou de terra. No ano a seguir foi minha professora Judite Beatriz de Sousa. Não sei o que aconteceu, mas a literatura tornou-se o centro da minha despedida da adolescência. Ou sei: aquela mulher obrigava-nos a ler, pegava no que líamos e elucidava-nos do que estava envolvido naquilo que líamos, numa linguagem exacta, clarificadora e sempre disponível para nos falar de um outro livro ainda.

A Literatura Portuguesa nunca mais me abandonou: e era tão-somente aquilo - ler, comentar, comparar com um outro texto, inscrever numa época bem delineada, conseguir construir com algum esmero algumas frases.

A sedução do ensino depende do professor. Eu dei este meu exemplo. Ainda deve haver hoje quem possa dar exemplos assim. Em breve já não haverá. Não depende somente do aluno ou das regras de uma qualquer instituição escolar. Um professor só é bom se, além do programa, nunca parou de estudar, nunca perdeu a curiosidade, sempre continuamente se informou não dos modos como ser professor mas dos âmbitos do saber a que se encontrava ligado.

Para isso precisava, antes de tudo o mais, de ter uma ligação afectiva à matéria que ensinava, dinheiro para sempre ir comprando livros sobre essa matéria, tempo para os ler.

Esta verdade óbvia não a tem ao seu dispor quem é mal pago, quem não tem tempo livre para, fora da escola onde ensina, se sentar a ler/estudar dentro de uma vida em que não chegue a casa estupidificado por horas inúteis encerrado num estabelecimento enlouquecido por comissões executivas que são «cães» de qualquer ministério que surja.

Poderão alguns professores não gostar do que fazem, admito. Mas o melhor é afastá-los dos alunos depois de umas horas obrigatórias de contacto; e não forçar os alunos a estarem continuamente cercados por quem gostaria de ter outra profissão. Como em tudo, aparecem sempre professores alertados e competentes que salvam a formação de um adolescente se não andarem a arrastar-se de cansaço e de revolta por corredores em que já nem conseguem pensar.

O ensino secundário português começou a ser estragado por Veiga Simão. Culminou com Roberto Carneiro e os seus esquecimentos bem calculados do ensino público. Tornou-se uma espécie de rodilha mal cheirosa, de esfregadela em esfregadela, atirada ao caso para entre um lixo inominável por todos estes ministros de que ninguém lembra o nome, como eu nem sequer sei o da actual. Sei que é uma pobre senhora que não vale a pena, com uma voz desgastada, empurrada a destruir a quase final hipótese de haver qualidade no ensino secundário português.

A prioridade do ensino deixou de ser transmitir saberes. Hoje culmina em planificações de um pouco de vazio no máximo de tempo possível. Ouvindo-se a palavra planificar, imediatamente sabemos que as chamadas pedagogias e didácticas passaram a ter o domínio sobre os conteúdos de cada disciplina e gerou-se uma complicação de saberes sem saberes, que consiste na aplicação de umas grelhas às quais se junta um cuspo de meditações bacocas nunca se percebe bem sobre o quê.

Um professor de biologia tem de saber biologia? Não. Tem de saber planear umas aulas que encaixem num programa oficial que enumera o que da biologia basta saber. Houve uma conjura que não foi só desta situação que se chama ministra; resultou de vários anos de fermentações bem calculadas de que ela se apoderou.

Percebi com clareza o desastre que se aproximava numa reunião em que estive, por um enganoso convite, com vários professores universitários que se especializavam em ensinar a ensinar o estrito das suas matérias. Não foi por acaso que olhares de quem conhece os corredores onde andam os apaniguados do ministério se trocaram entre um de matemática e alguém de português. Não foi por acaso que ninguém se preocupou com os conteúdos dos saberes. Apenas se ouvia zumbir ou silvar (por entre torvos cálculos) umas vagas conjuras que pouco se entendiam.

Os olhares, vi eu, circulavam entre essas pessoas de duas das mais centrais disciplinas, como quem suspende por momentos uma conjura escura. Já tinham tudo combinado. Eu rapidamente me vim embora, deixando gente a falar sem compreender que tudo não passava daquelas miradas baixas, iguais ao pior pó do chão.

Será ministério o que podemos chamar ao mero cruzamento (basta que somem as disciplinas controladas por esta espécie de repelência) de panóplias estratégicas?

Voltando à Literatura Portuguesa. Suponho que vai ser difícil alguém encontrar outra Judite Beatriz de Sousa. Ela está cansada de horas inúteis dentro de escolas imbecilmente obedientes, não só à ministra de agora, que em breve será substituída por outro anónimo qualquer, mas a esta imundície que a todos empurra.

Beatriz de Sousa anda perdida com estratégias, planificações e modos de lhe destruírem o que ela podia oferecer ao ensino do português. Tem esta nova gramática imbecil pela frente, que se contorce numa pestífera linguística que vai tapar a beleza de quaisquer palavras com novas imbecilidades gramaticais, ainda mais idiotas do que a mecânica aplicação das anteriores. (Pensar nas gramáticas que os ingleses têm, tão linearmente compreensíveis.)

Reduziram a qualidade e a necessidade de um texto à noção de que tudo é texto - uma merda qualquer, um jornaleco qualquer - para aí exercitarem o seu ódio ao que não seja o repelente tecnicismo. A par desta enxúndia, por todo o lado se instalou a rameira da didáctica. Mas terá ainda para destruir? Para destruir há sempre algo mais.

O pior é que reconstruir o que ficou coberto pela lama mais imunda demora muito mais do que o desaparecimento desta gente e do que ela representa. Pode demorar um tempo que já nem os alunos de agora alguma vez vejam.

Da filosofia à educação visual, da língua estrangeira à química, de todos a cada um, pergunte-se: têm vontade de sempre ler e estudar o que lêem? Têm dinheiro para isso? Têm tempo vosso para poder dar um alto conseguimento aos vossos alunos? É da educação o vosso ministério?"

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