Qualquer criminalização do pensar e do dizer é liberticida
V ai chegar a Portugal, pela via paternal da UE, a criminalização da negação do Holocausto. Negar a existência do Holocausto vai dar pena de prisão, embora se admita que diferentes interpretações nacionais possam coexistir em função da tradição legal de cada país. Tal significa - uma típica demonstração da forma como funciona a UE - que a legislação aprovada pelos 27 tanto pode ser aplicada como não.Em Inglaterra não o será, em França já o é. O problema para nós é que, conhecendo a apetência do PS (e com ecos no PSD) pelo "politicamente correcto" e a necessidade do Governo em encontrar distracções grátis e inócuas para si, há todas as probabilidades de, daqui a uns dias ou uns meses, termos uma cópia portuguesa dessa legislação.
A negação do Holocausto é uma aberração histórica e um extremismo político. Com mais ou menos detalhe, com diferentes interpretações sobre o alcance e o significado do que aconteceu, é da dimensão do vudu acreditar que os milhões de judeus que viviam na Alemanha, Polónia, Lituânia, Bielorrússia, Ucrânia, Holanda, Grécia, etc., etc., desapareceram do mapa dos vivos sem se saber porquê. Pensar que grandes "cidades" judaicas como Vilnius, Varsóvia, Cracóvia, Amesterdão, Salónica deixaram de o ser por algum beam me up sideral é estúpido e absurdo, mas as pessoas devem ter o direito de serem estúpidas e absurdas mesmo sobre os cadáveres alheios.
Que a destruição sistemática e organizada dos judeus foi preparada pelos nazis é também um facto histórico inegável à luz dos documentos e testemunhos existentes.
Autores "revisionistas" como David Irving podem ter razão num ou noutros ponto de interpretação, mas a "história" que produzem não é história. Mas mandá-lo para a cadeia, onde ele aliás já esteve, por pensar mal, ou mesmo pensar de modo obsceno - como é natural que as vítimas do Holocausto pensem, negadas no seu sofrimento - é um atentado à liberdade.
Mas há outra razão que revela os contornos "politicamente correctos" da criminalização do negacionismo: a recusa pelos autores da actual legislação em condenar os crimes do comunismo com um estatuto semelhante ao do nazismo. No debate entre os governos da UE, os países bálticos insistiram nessa dupla criminalização, dos crimes de Hitler e de Estaline (e de Lenine, Mao Tsetung, Pol Pot, etc.) A maioria dos países europeus recusou a proposta báltica, vinda de países que conheceram bem o domínio soviético e aceitaram fazer, ao bom modo hipócrita da UE, umas "audiências públicas" sobre os "crimes de Estaline".
Ora se há contabilidade trágica dos mortos no século XX, ela é ganha à distância pelos crimes de Estaline e dos diferentes regimes comunistas. Trata-se também de factos históricos irrefutáveis, desde as execuções em massa ao Gulag, desde a deportação de povos inteiros até formas geradas por experiências de engenharia social, da colectivização forçada ao Grande Salto em Frente e à Revolução Cultural. Na URSS, na China, no Camboja, na Hungria, na Roménia, em Angola, na Zâmbia, na Etiópia, etc., etc., milhões de pessoas foram presas, executadas, varridas da face da terra, porque tinham na sua esmagadora maioria "culpas objectivas".
Mas isto pode-se negar, como fazem muitos partidos comunistas e muitos intelectuais de esquerda pelo mundo fora, ou pode-se omitir, o que é uma das mais perversas formas de negar.
Dito isto, eu não defendo qualquer salomónica condenação do megacinismo, defendo a liberdade de se ter e defender ideias, mesmo que me sejam repulsivas. É ela a essência da liberdade de expressão e repito-o pela milésima vez: é o direito do outro pensar de uma forma que me parece no limite obscena e vergonhosa. Mas é assim a liberdade e qualquer criminalização do pensar e do dizer é liberticida.
A obsessão actual de criar sociedades "limpas" da violência, da mentira, da crueldade, do racismo, da xenofobia é um dos aspectos mais liberticidas em curso nas democracias ocidentais e tem vindo a agravar-se nos EUA e na Europa.
Do tabaco ao Holocausto, da pornografia ao fast food, dezenas de leis nos protegem do mal. Pode-se dizer que criminalizar a negação do Holocausto não é a mesma coisa que proibir fumar em público.
De facto não é, é mais grave. Mas a atitude geral é a mesma absurda, prepotente, liberticida obsessão que nos chega do Estado e dos governos em obrigar-nos a "viver bem" e a "pensar bem", ou a ir para a prisão.