Wednesday, August 4, 2010

Castilho on Alçada

Quando exprime certezas, erra grosseiramente. Quando responde, afunda-se em equívocos. Quando analisa, não vê os factos. Catita no vestir e no pentear, eis Isabel, leve no pensar, ministra da Educação e fantasista por compulsão.

A vacuidade e a imprecisão continuada do discurso, primeiro em entrevista aoExpresso de 31 de Julho, depois a vários canais televisivos para emendar a proposta de banir os chumbos, obriga ao exercício penoso de contraditar e esclarecer. Não cabendo tudo, escolho o mais danoso. O Expresso perguntou: pondera então alterar as regras de avaliação durante o seu mandato? A ministra respondeu: pondero. OExpresso insistiu: e está disposta a lançar esse debate para acabar com os chumbos? A ministra respondeu: sem dúvida. O Expresso considerou: muitos dificilmente concordarão com o fim da retenção. A ministra respondeu: por uma questão de tradição. Quando se deu conta da leviandade da proposta e de que muitos não concordavam, a ministra veio às televisões dar o dito por não dito, socorrendo-se dos países do Norte da Europa, cuja realidade ignora.

O objectivo de qualquer sistema de ensino é que todos aprendam. Mas em todos os sistemas há os que falham. A quantidade dos que falham é consequência de uma gama enorme de variáveis. Umas podem ser intervencionadas directamente pela escola e pelos professores. Outras não. Dependem dos próprios alunos. Das famílias. Da cultura vigente. Da consciência cívica dominante. Da qualidade dos sistemas políticos, da competência dos que mandam, da natureza das escolhas que são feitas e das prioridades que se estabelecem. Os métodos pedagógicos variam. Mas nenhum sistema sério diploma a ignorância como tem sido feito pelos dois últimos governos de Portugal. Esta é a questão e este é o conceito do tradicional chumbo: enquanto um cidadão não sabe o que está estipulado, o Estado sério não diz que ele sabe. E assim postas as coisas, obviamente que há chumbos nos países do Norte da Europa. Invoco, por todos, o caso da Noruega e socorro-me da publicação oficial Facts About Education in Norway, 2010. Na página 11 verifica-se que só 56 por cento dos alunos do secundário completaram o respectivo ciclo de estudos no tempo previsto. Houve 27 por cento de abandonos ou chumbos, 12 por cento que necessitaram de mais tempo e 6 por cento que ainda o tentavam concluir no momento da recolha dos dados (27+12+6 dá 45 e não 44, mas o erro é da própria publicação citada). Não se chumba lá? Nas páginas 22 e 23 estão as tabelas da relação do número de alunos para cada professor: 4 no pré-escolar, 12 no básico, 8,5 no secundário e 11,9 no superior. Ora a nossa ministra da Educação disse ao Expresso que turmas de 15 e menos alunos apresentam baixas taxas de sucesso, quando ela sabe bem que essas são turmas com os alunos mais problemáticos do nosso sistema e só por isso, que não pela dimensão, registam baixos índices de aproveitamento. Foi séria tal referência? Na página 8 da publicação que cito verificamos que mais de 40 por cento das escolas básicas da Noruega são de reduzida dimensão, tendo crianças de idades e níveis diferentes a serem leccionadas na mesma sala (escândalo, paradigma de outro século, segundo os cânones de Isabel Alçada). Se formos à Suécia, a situação é análoga. Os países do Norte fazem o contrário do que aqui acaba de ser imposto. Como comentaria a ministra se a tivessem confrontado com a realidade que ignora ou manipula?

Referindo-se às competências que os alunos devem adquirir no ensino básico, a ministra teve o topete de dizer ao Expresso que "nem existe documento que as defina". Grosseira mentira. Existe e sobre ele correram rios de tinta.

Isabel Alçada distorceu os factos quando falou de Inglaterra, onde o insucesso escolar está na ordem do dia. Basta só ver o número dos que não obtêm o certificado que lhes abre as portas das universidades.

Isabel Alçada não faz a mínima ideia do que se passa na Finlândia ou finge que não sabe, o que é pior. Mais de um quarto dos alunos do sistema tem apoios complementares e 8,5 por cento são objecto de educação especial, segundo uma tipologia rigorosa que aqui foi banida. Todo o ensino é totalmente gratuito e a profissão de professor é das mais prestigiadas. Os normativos duram décadas. O direito ao ensino obrigatório pode ser revogado se os alunos não cumprirem as regras. Um comité aprecia as infracções e pode determinar soluções alternativas. Esta é uma questão tabu que não se discute entre nós, por complexos políticos. Boa parte dos alunos que não aprendem nem deixam aprender não quer estar na escola. As famílias desses alunos pensam e agem como eles. Faltam, agridem, perturbam e nada acontece. Realidade bem diferente da dos países do Norte da Europa, onde a fortíssima consciência e cultura cívicas impedem situação semelhante.

Termino com números, colhidos das estatísticas oficiais da OCDE e relativos a 2006, expressos em dólares americanos. Portugal gastou com cada aluno do básico, secundário e superior, por ano, respectivamente, 5908, 7052 e 9724. Pela mesma ordem, eis os gastos dos nórdicos. Finlândia: 7570, 6585 e 12.845. Noruega: 9781, 12.559 e 16.235. Dinamarca: 8854, 10.400 e 15.391. Suécia: 8032, 8610 e 16.991. Se atendermos ainda a que desde 2005 as nossas despesas com a educação diminuíram sempre e fortemente, o contraste diz o que Isabel Alçada escondeu.Professor do ensino superior (s.castilho@netcabo.pt)

Wednesday, May 23, 2007

A escola que é um manifesto contra o "eduquês"

23.05.2007

É privada, escolhe os professores, recebe todos os alunos do concelho, dos pobres aos ricos, ensina a tabuada, tem quadro de honra, não vai em modas. Fica em Arruda dos Vinhos e perceber como lá se ensina desfaz muitos mitos sobre como deve ser o sistema de ensino

Fica em Arruda dos Vinhos, concelho rural dos arredores de Lisboa. É a única escola desse concelho que tem terceiro ciclo do ensino básico e, por esse concelho ter sido o único onde a média a Matemática nos exames nacionais do 9º ano foi positiva, o PÚBLICO visitou a João Alberto Faria. A reportagem foi publicada segunda-feira, mas vale a pena voltar ao tema.

Porque essa escola é um manifesto vivo contra o tipo de políticas que têm degradado a qualidade do ensino em Portugal.

Primeiro: naquela escola entende-se, e citamos, que "a massificação do ensino levou a um menor grau de exigência, mas a Matemática não se tornou mais fácil e mantém as dificuldades próprias da disciplina"- o que requer "esforço e trabalho".

Segundo: naquela escola não se embarca em modas, prefere-se cultivar a exigência. Por isso "o grupo de Matemática é pouco atreito a algumas inovações pedagógicas", por isso defende-se que "saber a tabuada é mais importante do que saber utilizar a calculadora", por isso interditaram mesmo a sua utilização no 2º ciclo.

Terceiro: como sem bons professores não há boas escolas, na Alberto Faria todos os professores são entrevistados antes de serem contratados, explicando-se-lhes qual a filosofia da escola e avaliando se os candidatos estão à altura do que se lhes vai pedir.

Quarto: não há nenhuma relação inelutável entre os bons resultados de uma escola e o nível sócio-económico da região onde se insere. Arruda dos Vinhos está longe de ser um dos concelhos com mais poder de compra e na João Alberto Faria não se seleccionam os alunos, recebem-se todos, mais ricos ou mais pobres.

Mais: recebem-se também alunos de concelhos vizinhos, porque, como explicou um aluno do 10º ano que quer ir para Medicina, nela "o nível de exigência dos professores pode ser compensado pelos resultados nos exames, que normalmente tendem a ser melhores". Quem responde bem à exigência possui também o estímulo de figurar no Quadro de Honra da escola.

Quinto: uma direcção escolar focada em disciplinas como Matemática ou Português levou a que o tempo lectivo destinado ao Estudo Acompanhado fosse dedicado só a essas disciplinas.

E quando acabam as aulas do 9.º ano os docentes estão disponíveis para dar aulas extra de preparação para os exames de Português e Matemática e ainda todas as que sentirem necessárias para o esclarecimento de dúvidas dos seus alunos.

Tudo o que atrás fica escrito permite que os bons resultados daquela escola se prolonguem no ensino secundário, tendo o ano passado ficado em 32º lugar nos rankings feitos a partir dos resultados a Matemática dos seus alunos no 12º ano. Uma boa posição, se nos lembrarmos que falamos de uma escola que não foi feita para alunos de elite.

Contudo, para o quadro ser completo, é necessário sublinhar outra: esta é uma escola privada. O seu nome completo é Externato João Alberto Faria. Mas os seus alunos não pagam para a frequentarem, pois, como é a única do concelho, tem um contrato de associação com o ministério.

Estes contratos de associação são relativamente raros no país, havendo mesmo assim quem defenda que o Estado devia construir escolas públicas ao lado de estabelecimentos privados como este. Mesmo que tal saísse muito mais caro. E resultasse numa menor qualidade de ensino. Só que a Alberto Faria mostra como fazer o contrário pode resultar muito melhor.

Conclusões? Que se as escolas escolhessem os professores, se os alunos escolhessem as escolas, se o Estado se limitasse a dar orientações gerais, em vez de dirigir, e desse um cheque-ensino aos alunos menos abonados que quisessem ir para uma escola mais exigente, ou melhor, privada e paga, ganharia a qualidade de ensino e o ministro das Finanças agradeceria. Só os interesses instalados se revoltariam.

José Manuel Fernandes

Wednesday, May 16, 2007

Sócrates professor independente

Do Público de hoje:

José Sócrates foi professor da Universidade Independente, apesar de a lei o proibir
16.05.2007 - 09h11 José António Cerejo, PÚBLICO

O ex-secretário de Estado do Ambiente José Sócrates foi "professor convidado" da Universidade Independente em 1996-1997, logo após a conclusão da sua licenciatura naquele estabelecimento.

A lei então em vigor proibia os membros do Governo de exercer quaisquer outras "funções profissionais, remuneradas ou não". A contratação de Sócrates, conforme consta da lista dos professores da UnI publicada no Diário da República pelo Ministério da Educação, foi feita mediante um "acordo de colaboração".

Na entrevista em que, no mês passado, tentou esclarecer o seu percurso académico, o primeiro-ministro quis antecipar novas polémicas, referindo-se, por iniciativa própria, à sua colaboração com a UnI.

Segundo explicou, o reitor convidou-o "para dar aulas" logo após a sua licenciatura. "E eu estava tentado a aceitar. Achava honroso o convite. Depois descobri que não podia dar aulas porque estava impedido por lei", contou, adiantando que havia uma "expressa incompatibilidade de funções entre membros do Governo e qualquer actividade regular de dar aulas".

Desconsolado com facto de não poder aceitar, o recém-licenciado encontrou a solução que revelou na entrevista: "O que acabei por fazer foi dar uma série de seminários a alunos da cadeira de Ambiente, alunos [que] salvo erro eram do curso de Engenharia Florestal, como forma de ser gentil e atencioso com a UnI."

A alternativa simpática descoberta por Sócrates pecava, porém, por um problema: era igualmente incompatível com as suas funções governamentais. Isto porque a lei não permite qualquer distinção entre a "actividade regular de dar aulas" e "dar uma série de seminários".

Expressamente, o que a Lei n.º 64/ 93, com as alterações de 1994, 1995 e 1996, dizia era tão simples quanto isto: "A titularidade dos cargos a que se refere o número anterior [incluindo os de membro do Governo] é incompatível com quaisquer outras funções profissionais, remuneradas ou não."

E as excepções abertas pela mesma lei para "as actividades de docência no ensino superior" não remuneradas, bem como as que constavam de um outro diploma de 1996 para "a realização de conferências e palestras" remuneradas, aplicavam-se apenas aos "titulares de altos cargos públicos" descritos nessas leis, não se aplicando aos membros do Governo.

A esta questão da violação da lei das incompatibilidades acresce o facto de, a fazer fé no Departamento do Ensino Superior do Ministério da Educação, a actividade exercida por Sócrates na UnI ter sido mesmo a de "professor convidado".

Publicada por imperativo legal em 17/10/1997, a "listagem do pessoal docente" daquela universidade incluía, em 31/12/1996, o licenciado José Sócrates Sousa, com a categoria de "professor convidado" e sujeito ao regime contratual do "acordo de colaboração".

As restantes colunas do mapa não indicam o número de horas semanais de aulas leccionadas e têm em branco o espaço destinado a anotar se o professor tem actividade docente.

O PÚBLICO não conseguiu esclarecer, junto da UnI e do gabinete do primeiro-ministro, qual a natureza do "acordo de colaboração" em causa, nem qual a remuneração que lhe correspondia. Colocado perante a lei das incompatibilidades e as contradições existentes entre o que Sócrates disse o que consta do Diário da República, o gabinete do primeiro-ministro reagiu assim: "Nada a responder".

Sunday, May 6, 2007

Bernard-Henri Lévy On America

A marca BHL

A sua fama, naturalmente, precede-o. Pelas melhores e pelas piores razões. A sua obra de ensaísta, divulgador e jornalista é vasta, toca temas de grande actualidade numa escrita poderosa. Material de "best-seller". Em contrapartida, o estatuto de "estrela intelectual" irrita. Compôs uma figura - são famosas as suas camisas brancas de colarinho aberto. Cultiva um estilo que convém aos tempos hipermediatizados em que vivemos. Criou uma marca: Bernard-Henri Lévy já é apenas BHL. Um caso que talvez só seja possível num país onde os intelectuais têm um lugar à parte.

BHL escreve nos jornais, é omnipresente nas televisões, desloca-se pelo mundo, interpela os poderes em nome das suas causas, aliás, todas louváveis. A sua profissão: militante dos direitos humanos e combatente dos totalitarismos. Mais do que filósofo, embora tenha estudado filosofia na prestigiada École Normal Supérieur, discípulo de Althusser e de Derrida. O seu nome está ligado ao movimento dos Novos Filósofos, nascido em França em 1976. Ele e os seus amigos, como André Glucksmann, vinham da extrema-esquerda e denunciavam o compromisso da esquerda francesa com o Gulag soviético.

Os media adoram-no e percebe-se porquê: cada resposta sugere um título, mesmo que às vezes nos deixe em suspenso, à espera de mais. Os académicos acusando-o de superficialidade. Com
algum desdém, alguns jornalistas dizem que os seus livros de reportagem são "romanquêtes". Por exemplo, aquele que escreveu em 2003 sobre Daniel Pearl, repórter do "Wall Street Journal", raptado e decapitado no Paquistão por um ramo da Al Qaeda ("Qui a tué Daniel Pearl"). A verdade é que o seu método é eficaz: vai lá sempre, aos locais onde se encontra a barbárie, seja a destruição de Sarajevo ou a limpeza étnica no Kosovo.

A sua última grande aventura foi em Darfur. Entusiasma-se quando discutimos a questão já com o gravador desligado. Conta como entrou clandestinamente, ignorando as autoridades de Cartum, o único jornalista ocidental a fazê-lo nos últimos tempos. É esta hoje a sua grande batalha contra a indiferença. Nisso, é absolutamente consequente.

Politicamente, declara-se de esquerda, embora de uma esquerda rara em França. Gosta da América como se verá nesta entrevista, é pró-israelita e mais ou menos liberal. Três pecados imperdoáveis. Vota Ségolène. TdeS

Temos a cabeça cheia de clichés sobre a América e são todos falsos
Teresa de Sousa
Fomos encontrá-lo num hotel de luxo, em Lisboa, onde passou três dias disponível para a imprensa portuguesa. A editora Asa acaba de publicar o seu livro mais recente, "American Vertigo", resultado de um longo périplo pelos Estados Unidos a convite da revista "Atlantic Monthly" para seguir as pisadas de Alexis de Tocqueville, o grande sociólogo francês que escreveu, no século XIX, a obra mais emblemática sobre a América - "De la Democratie en Amérique".

A viagem de Bernard-Henri Lévy, aliás, BHL, 173 anos depois do seu compatriota, foi realizada em 2004, em plena campanha para a reeleição de Bush. Por estrada, quase sempre. Este-Oeste, Norte-Sul, ao estilo de Kerouac, sem paragens certas nem horários a cumprir. "Foi a estrada que fez este livro (...), e que inspirou esta obra incompleta de um possível retrato da América".
"American Vertigo" foi publicado primeiro nos EUA, no início de 2006, e mereceu mais críticas do que elogios. A nossa conversa começa por lá e termina, obrigatoriamente, do lado de cá - em França.

Depois da sua longa viagem pela América, mudou as ideias que tinha?

Mudei. Fiz o que muito pouca gente faz: atravessar o país em todos os sentidos por estrada, olhar para tudo, para tentar testar os clichés contra a prova do real. Todos nós temos a cabeça cheia de clichés quando se trata da América. Os anti-americanos têm clichés, os pró-americanos também. Todos os clichés são falsos.

Uma experiência como esta transforma-se numa máquina de quebrar clichés. As minhas ideias mudaram.

Por exemplo?

Pensava que a América era um país imperial. A ideia merece ser revista. Pensava que a América não tinha sistema de saúde e de segurança social. É mais complicado que isso. É diferente do nosso, uma mistura de publico e privado, mas existe. Pensava que a América era um país materialista e é provavelmente o país mais religioso do mundo. Pensava que o Sul eram os Estados da segregação, onde os negros teriam ainda um longo caminho a percorrer para cumprir o programa de Martin Luther King. Descobri que o caminho já tinha sido percorrido no essencial. Cada passo foi uma surpresa.

Esta surpresa confirmou a ideia de que europeus e americanos continuam a pertencer ao mesmo planeta ou viu uma América que diverge cada vez mais de nós?

O que vi e o que discuti com inúmeros intelectuais, de direita e de esquerda, conservadores e democratas, é que há, de facto, uma tentação de largar as amarras da Europa. Mas direi que a questão que acabou de colocar é aquela que se colocam a eles próprios todos os americanos. A questão central é essa...

A relação com a Europa?

O que é que fazemos com a Europa? A Europa é a nossa mãe, mas como é que traduzimos isso nos dias hoje? Como é que resolvemos o nosso complexo de Édipo ou de Electra? Matamos ou não a mãe? É a questão metafísica e, consequentemente, política.

Por que é que se coloca agora? Porque a guerra-fria terminou? Porque o mundo está a mudar?

Porque a guerra-fria acabou. Porque há uma mudança da população americana com a chegada dos hispânicos. E pela proximidade à Ásia através da costa do Pacífico. E também por causa da psicologia dos homens. O complexo de Édipo existe nos humanos como nas colectividades. Nós, na Europa, temos o complexo ao contrário: o ódio da mãe pela filha. Que é o anti-americanismo. Mas, se tivesse de fazer uma aposta, apesar de tudo diria que não haverá ruptura entre a América e a Europa. A presença europeia é demasiado forte, os valores europeus impregnam a sociedade americana de forma profunda e creio que, sem isso, a América seria outra coisa.

Há passagens no seu livro dedicadas a descrever o Presidente americano. Pelo menos inicialmente os europeus não compreendiam essa escolha...

Olhe para o seu país. Uma civilização, um império, uma cultura e ofereceu-se a si próprio durante décadas dois cretinos: Salazar e Caetano. Isso não quer dizer nada. Na França é o mesmo. O que eu creio, realmente, é que George W. Bush é um parêntesis. Temos os olhos fixos em Bush, ficamos completamente obnubilados por ele, como se ele fosse a verdade da América. Ora, não é nada disso.

Mas é essa a América que temos visto, dos "neocons", do fundamentalismo religioso...

Isso quer dizer que não compreendemos nada.

Encontrou Barak Obama em 2004 e diz no seu livro que é preciso prestar-lhe atenção. Hoje todos nós lhe prestamos imensa atenção.

Creio ter sido um dos primeiros europeus a imprimir o nome de Barak Obama e a fazer o seu retrato. Logo que o vi, senti imediatamente que era uma personagem considerável e uma das faces possíveis da América.

Diz que Obama é um negro branco.

O que digo é que a força de Obama reside no facto de não ser um descendente de um escravo do Sul. O seu pai era queniano. E isso muda tudo. Quer dizer que ele não reenvia aos outros americanos uma imagem culpabilizante. Não lhes reenvia a imagem do país da segregação, do Ku-Klux-Klan, do esclavagismo. É um negro que joga na sedução e não na culpabilização. A sua força está aí.

Escreve também bastante sobre a sua experiência com as comunidades árabes, sobre o facto de se sentirem americanos, ao contrário do que acontece na Europa.

Os americanos inventaram um sistema de cidadania, um modo de regulação dialéctica entre o particular e o universal, entre a origem e o destino, que funciona bastante bem. Na Europa e na França teríamos todo o interesse em inspirarmo-nos nisto.

Podemos voltar aos valores? Há hoje na Europa a ideia de que, depois de Guantánamo e de Abu Ghraib, a democracia americana não funciona. Visitou Guantánamo. Contesta essa ideia no seu livro.

Fui ver Guantánamo. É verdade que é inadmissível, que é um escândalo, que é uma zona de não-direito e que é indigna de uma democracia. Mas não é o Gulag. E os que nos vêm dizer que Guantánamo é o Gulag americano são cretinos, não têm a mínima ideia do que é o Gulag. O Gulag significa dezenas de milhões de mortos. Guantánamo significa centenas de prisioneiros sem direitos que não são bem tratados, sem dúvida, em alguns casos torturados. Eis um caso em que está diante de um verdadeiro cliché.

Compara a denúncia de Abu Ghraib com a denúncia do que se passou com a França na guerra da Argélia. Diz que eles foram mais rápidos a denunciar e a condenar.

A grande diferença entre a França e a América é que a França levou 40 anos para aceitar o seu Abu Grahib e a América levou três dias.

Porquê?

Porque a América é uma democracia mais viva que a França. Bastaram 48 horas para a América ser informada sobre Abu Ghraib, ficar horrorizada com Abu Ghraib e condenar Abu Ghraib. Há pouco falávamos de Obama e de Hillary Clinton. A América pode eleger no próximo ano uma mulher ou um negro. Portugal estaria preparado para isso?

Mas a França está, pelo menos no que diz respeito a uma mulher.

Mas está pronta a eleger um negro? E mesmo uma mulher? Vamos ver. Espero que sim. Mas olhe para a maneira como ela é tratada, a nossa mulher, Ségolène. Os insultos as insinuações.

Conversou longamente com algumas das figuras mais conhecidas entre os neoconservadores. As suas origens são as mesmas que as deles: vieram da esquerda, são anti-totalitários, vêm a democracia como valor universal. Também costuma apelar às democracias para agirem contra os tiranos. Qual é a diferença?

A diferença é que continuo a ser de esquerda e eles não. No plano moral, não há diferença. O problema deles não é serem imorais. Moralmente tinham razão. Claro que é preciso derrubar um ditador. Claro que a democracia é boa para todos os povos. Claro que os Direitos do Homem não são reservados aos ocidentais. Apenas há diferença no plano político. A responsabilidade de um Estado não é apenas ter razão nos princípios mas também ganhar no plano político. A guerra no Iraque, a maneira como foi conduzida, fez com que estivesse antecipadamente perdida. Para ganhar é preciso um consenso internacional, aliados no terreno e um plano de reconstrução. Foram as três coisas que faltaram à América.
Eles fizeram no Iraque os mesmos erros que fazem na América. Pensam que o Estado serve de pouco para combater a miséria, para os cuidados de saúde, que é preciso deixar o mercado livre funcionar. Fizeram o mesmo erro no Iraque: bastava derrubar Saddam e, depois, a Providência democrática faria o resto.

Diz no seu livro, já disse aqui, que a América não é uma nação imperial. Mas, depois da guerra-fria, começou a pensar-se como império.

Não tenho a certeza disso. A questão imperial é uma questão nossa, dos europeus. Fomos nós as nações imperais. O imperialismo é o nosso fardo. A América não tem um imaginário imperial, isso é falso. A verdadeira tentação da América, a sua tendência pesada e, talvez, o maior perigo é deixar cair o mundo... O isolacionismo.
Espero que a queda dos neoconservadores não tenha como efeito deitar fora o bebé com a água do banho. Abandonar toda a espécie de preocupação com o mundo.

Como é que explica que a ideia de uma Europa como anti-América seja sobretudo uma ideia francesa?

Não, não é apenas francesa. É verdadeira na Alemanha, na Espanha, na Itália, talvez em Portugal... Mas é verdade que nasceu em França. O anti-americanismo era uma ideia de extrema-direita...

Agora é de esquerda.

Se o anti-americanismo se transformar no programa da esquerda, isso será muito grave porque, na sua substância, é uma ideia fascista. É o reflexo dos fascistas franceses dos anos 20 e 30 face a uma nação democrática. É a reacção dos nostálgicos da nação orgânica, a nação baseada numa raça, num sangue, etc..., face à nação rousseauniana, que é a América. A América é uma incarnação do sonho de Rousseau, gente que vem de toda a parte e que, por um acto de vontade, decide fazer uma nação. Isto, os contra-revolucionários franceses do século XIX e, depois, os fascistas dos anos 20, viam como o seu o pior pesadelo. É daqui que nasce o anti-americanismo em França. Que, depois, passa para a Alemanha, como os românticos alemães, com os ideólogos nazis, com Heidegger. Ver uma parte da esquerda europeia ligada a este anti-americanismo de origem fascizante é algo que me aterroriza.

E isso é um problema para a integração europeia?

Sim. Creio que não se pode detestar a América e querer, ao mesmo tempo, a Europa. Porque, no fundo, a ideia de que a Europa é possível é a América que no-la dá. É já, de alguma maneira, uma Europa - povos diferentes, de tradições e memórias que não têm nada umas com as outras, que formam uma nação. É isto a América e é isto que tentamos fazer na Europa.

O que leva 70 por cento dos franceses a dizer que a França está em declínio? Ou, como se diz, como se explica este "malaise" de um país que é rico e, a muitos títulos, magnífico?

Isso vai mudar... O "malaise" é uma questão de memória. Há três acontecimentos recentes na nossa memória com os quais temos dificuldade em lidar. Vichy, a colonização e o Maio de 68...

Acha que podemos comparar o Maio de 68 com Vichy...

Não. Mas há uma relação difícil com o Maio de 68. Há uma parte da França que continua a pensar que foi uma coisa muito má, que os nossos males vêm daí.

Diz no seu livro, contrariando a percepção comum na Europa, que o terrorismo islâmico é uma forma de fascismo - o islamofascismo. É a mesma definição de Bush.

As pessoas na Europa crêem que a origem do terrorismo islâmico é a pobreza ou o Corão. Não é uma coisa nem outra. A sua tradição ideológica chama-se fascismo. É a sua verdadeira natureza. É uma questão política, não é uma questão religiosa.

Os americanos percebem isso melhor que nós?

Não, não creio. Eles estão mais na linha da guerra de civilizações, ou seja, uma guerra de religiões. Ora, não é nada disso, é uma batalha política contra gente que é fascista...

Porque defendem uma ideologia totalitária?

Li os fundadores dos Irmãos Muçulmanos, li os inspiradores de Komeini, li os fundadores do Partido Baas e verifiquei que as ideias que os alimentam são ideias europeias e, em grande parte, fascistas. Há também o Corão naturalmente. Mas o Corão é como todos os textos religiosos, permite várias interpretações. Se fosse só isso não estaria tão inquieto.

Saturday, April 21, 2007

Um mau caminho para a liberdade

Um mau caminho para a liberdade
21.04.2007, José Pacheco Pereira

Qualquer criminalização do pensar e do dizer é liberticida

V ai chegar a Portugal, pela via paternal da UE, a criminalização da negação do Holocausto. Negar a existência do Holocausto vai dar pena de prisão, embora se admita que diferentes interpretações nacionais possam coexistir em função da tradição legal de cada país. Tal significa - uma típica demonstração da forma como funciona a UE - que a legislação aprovada pelos 27 tanto pode ser aplicada como não.

Em Inglaterra não o será, em França já o é. O problema para nós é que, conhecendo a apetência do PS (e com ecos no PSD) pelo "politicamente correcto" e a necessidade do Governo em encontrar distracções grátis e inócuas para si, há todas as probabilidades de, daqui a uns dias ou uns meses, termos uma cópia portuguesa dessa legislação.

A negação do Holocausto é uma aberração histórica e um extremismo político. Com mais ou menos detalhe, com diferentes interpretações sobre o alcance e o significado do que aconteceu, é da dimensão do vudu acreditar que os milhões de judeus que viviam na Alemanha, Polónia, Lituânia, Bielorrússia, Ucrânia, Holanda, Grécia, etc., etc., desapareceram do mapa dos vivos sem se saber porquê. Pensar que grandes "cidades" judaicas como Vilnius, Varsóvia, Cracóvia, Amesterdão, Salónica deixaram de o ser por algum beam me up sideral é estúpido e absurdo, mas as pessoas devem ter o direito de serem estúpidas e absurdas mesmo sobre os cadáveres alheios.

Que a destruição sistemática e organizada dos judeus foi preparada pelos nazis é também um facto histórico inegável à luz dos documentos e testemunhos existentes.

Autores "revisionistas" como David Irving podem ter razão num ou noutros ponto de interpretação, mas a "história" que produzem não é história. Mas mandá-lo para a cadeia, onde ele aliás já esteve, por pensar mal, ou mesmo pensar de modo obsceno - como é natural que as vítimas do Holocausto pensem, negadas no seu sofrimento - é um atentado à liberdade.

Mas há outra razão que revela os contornos "politicamente correctos" da criminalização do negacionismo: a recusa pelos autores da actual legislação em condenar os crimes do comunismo com um estatuto semelhante ao do nazismo. No debate entre os governos da UE, os países bálticos insistiram nessa dupla criminalização, dos crimes de Hitler e de Estaline (e de Lenine, Mao Tsetung, Pol Pot, etc.) A maioria dos países europeus recusou a proposta báltica, vinda de países que conheceram bem o domínio soviético e aceitaram fazer, ao bom modo hipócrita da UE, umas "audiências públicas" sobre os "crimes de Estaline".

Ora se há contabilidade trágica dos mortos no século XX, ela é ganha à distância pelos crimes de Estaline e dos diferentes regimes comunistas. Trata-se também de factos históricos irrefutáveis, desde as execuções em massa ao Gulag, desde a deportação de povos inteiros até formas geradas por experiências de engenharia social, da colectivização forçada ao Grande Salto em Frente e à Revolução Cultural. Na URSS, na China, no Camboja, na Hungria, na Roménia, em Angola, na Zâmbia, na Etiópia, etc., etc., milhões de pessoas foram presas, executadas, varridas da face da terra, porque tinham na sua esmagadora maioria "culpas objectivas".

Mas isto pode-se negar, como fazem muitos partidos comunistas e muitos intelectuais de esquerda pelo mundo fora, ou pode-se omitir, o que é uma das mais perversas formas de negar.
Dito isto, eu não defendo qualquer salomónica condenação do megacinismo, defendo a liberdade de se ter e defender ideias, mesmo que me sejam repulsivas. É ela a essência da liberdade de expressão e repito-o pela milésima vez: é o direito do outro pensar de uma forma que me parece no limite obscena e vergonhosa. Mas é assim a liberdade e qualquer criminalização do pensar e do dizer é liberticida.

A obsessão actual de criar sociedades "limpas" da violência, da mentira, da crueldade, do racismo, da xenofobia é um dos aspectos mais liberticidas em curso nas democracias ocidentais e tem vindo a agravar-se nos EUA e na Europa.

Do tabaco ao Holocausto, da pornografia ao fast food, dezenas de leis nos protegem do mal. Pode-se dizer que criminalizar a negação do Holocausto não é a mesma coisa que proibir fumar em público.

De facto não é, é mais grave. Mas a atitude geral é a mesma absurda, prepotente, liberticida obsessão que nos chega do Estado e dos governos em obrigar-nos a "viver bem" e a "pensar bem", ou a ir para a prisão.

Tuesday, April 10, 2007

Perguntas que esperam pelo primeiro-ministro

Do Público:

As perguntas mais importantes que esperam uma resp
osta do primeiro-ministro

10.04.2007

As duas referências públicas do primeiro-ministro a este caso foram feitas por escrito – ao PÚBLICO e à SIC –, mas nunca responderam a questões concretas. Aqui ficam as questões mais importantes a que José Sócrates deve responder para clarificar o dossier:

1 Por que razão José Sócrates deixou o ISEL para acabar o curso na UnI?

2 José Sócrates pediu equivalência a 25 cadeiras das 31 que completavam a licenciatura da UnI. Acabou por receber equivalência a mais uma disciplina, ou seja, a UnI deu-lhe equivalência a 26 cadeiras. Por que motivo no ISEL teria de completar mais 12 cadeiras para se licenciar e na UnI apenas teve que fazer mais cinco?

3 António José Morais, então director do Departamento de Engenharia Civil da UnI, leccionou quatro das cinco cadeiras concluídas na Independente. Segundo o próprio, este grupo de disciplinas, algumas do 3.º ano, outras do 5.º, representava todas as cadeiras leccionadas por aquele professor na UnI. António José Morais foi, simultaneamente ao período em que lhe deu aulas, adjunto do secretário de Estado da Administração Interna, Armando Vara, colega de Governo de Sócrates, e mais tarde director do Gabinete de Equipamento e Planeamento do Ministério da Administração Interna.
3.1 José Sócrates já conhecia António José Morais antes de este ser seu professor na UnI?
3.2 António José Morais já havia sido seu professor no ISEL?
3.3 Por que razão José Sócrates não identificou António José Morais como tendo sido seu professor, nas conversas que manteve com o PÚBLICO, ao longo de uma semana?
3.4 Quantas horas de aulas por semana compunham o horário curricular?

4 Nessas conversas que manteve com o PÚBLICO, antes da publicação da primeira peça sobre o caso, Sócrates afirmou-se “insultado” pelas perguntas que lhe foram feitas, disse ter frequentado as aulas e concluído os exames com aproveitamento, mas nunca forneceu provas sobre o que afirmava.
4.1. José Sócrates não guardou nenhuma prova documental da sua carreira académica? Nunca levantou nenhum dos diplomas?
4.2 Qual o motivo que levou Sócrates a delegar no reitor da UnI todos os esclarecimentos, documentais ou testemunhais, sobre o caso, sabendo-se que Luís Arouca já havia estado na origem de indicações erradas sobre o seu currículo publicadas no jornal 24 Horas, em que terá referido cadeiras que não existiam no seu plano de curso?
4.3 Por que razão Sócrates se recusou sempre a responder por escrito às perguntas formuladas, também por escrito, pelo PÚBLICO?
4.4 Como é que, durante quase uma semana, não foi capaz de citar um seu colega ou um dos seus dois professores da UnI?
4.5 Qual o motivo por que não apresentou, por exemplo, a sua monografia de Projecto e Dissertação, tese final do curso?

5 Da matrícula de José Sócrates na UnI consta que não apresentou qualquer documento de prova das cadeiras já feitas no ISEC e no ISEL e só apresentou atestado das 12 cadeiras concluídas no ISEL, em Julho de 1996, ou seja, quando estava praticamente a concluir o curso na UnI.
5.1 A que se deveu este atraso?
5.2 Como pôde a UnI aceitar a inscrição, aprovar um plano de equivalências, permitir a frequência de aulas e a realização de exames sem o documento que atestava as cadeiras finalizadas no ISEL?

6 Quatro notas das cadeiras concluídas na UnI foram lançadas em Agosto e o diploma tem data de 8 de Setembro de 1996.
6.1 Sabendo-se ser anormal o lançamento de notas em Agosto, bem como a passagem de diplomas ao domingo, que justificação é dada para isso?

7 Numa das folhas consultadas pelo PÚBLICO aparece a palavra “isento” no topo da página.
7.1 Sócrates pagou propinas?
7.2 Que valor foi fixado?
7.3 A despesa entrou no IRS?

8 O reitor Luís Arouca disse por várias vezes que só conheceu Sócrates quando este ingressou na universidade. No entanto, em trocas de correspondência anteriores, Sócrates despedia-se “... do seu, José Sócrates”.
8.1 Quando é que Luís Arouca e José Sócrates se conheceram?

9 A que se referia José Sócrates quando, num fax enviado a Luís Arouca que está no seu dossier de licenciatura, escreveu: “Caro Professor, aqui lhe mando os dois decretos (o de 1995 fundamentalmente) responsáveis pelo meu actual desconsolo.”

10 Por que motivo não foram corrigidos todos os erros constantes da biografia publicada no Portal do Governo, mantendo-se a referência errada a uma pós-graduação em Engenharia Sanitária e continuando a ser omitido o MBA em Gestão já depois de o termo “engenheiro” ter sido substituído pelo de “licenciado em Engenharia Civil”?

Monday, April 9, 2007

Há mais alunos para além de Sócrates

Do Público de 9/4/2k7

Há mais alunos para além de Sócrates
09.04.2007, Santana Castilho

A forma como a Universidade Independente documentou o percurso académico de Sócrates é uma bizarra trapalhada

Apesar de serem antigas, na "blogosfera", as referências ao percurso académico de Sócrates e de nem sequer ter sido a peça do PÚBLICO a primeira a aparecer na comunicação social escrita, foi a decisão editorial deste jornal, secundada pelo Expresso, que, definitivamente, deu aos factos repercussão nacional.

A forma como a Universidade Independente documentou o percurso académico de Sócrates é uma bizarra trapalhada.

Recordemos alguns dos factos publicados pelo PÚBLICO e pelo Expresso: coisas a que chamam documentos não estão assinadas, não têm data nem timbre, nem qualquer carimbo, nem sequer numeração; não existem "livros de termos"; a decisão sobre a equivalência foi tomada sem que o processo estivesse instruído com um único documento oficial relevante; segundo o então reitor, "... as fichas de cada aluno já ninguém sabe delas...", "... nos primeiros anos a nota final é acompanhada com fundamento, depois é deitada fora..." e, quanto ao registo de pagamento de propinas, "... ao fim de cinco anos vai tudo para o maneta..."; o presidente do Conselho Científico diz nunca ter visto Sócrates e diz que o seu processo de equivalências jamais foi submetido a qualquer órgão académico; o diploma de Sócrates foi passado a um domingo; um estudo do oficialíssimo Observatório da Ciência e do Ensino Superior, a que presidiu a actual ministra da Educação, diz não ter havido licenciados pela Universidade Independente no ano e no curso em que Sócrates se diplomou e as explicações oficiais para a contradição são deploráveis, quando confrontadas com as explicitações do próprio documento.

Face a tudo isto, a dúvida está instalada e a credibilidade dos diplomas outorgados ao aluno Sócrates e aos milhares que o antecederam e sucederam irremediavelmente manchada. É aqui, na protecção devida aos alunos, que reside o lado mais importante da questão, não sublinhado pelo que tem vindo a público: o falhanço estrondoso, ao longo dos anos, da fiscalização do Estado sobre a actividade privada desta universidade (e das outras?).

As disposições legais vigentes exigiam que o Estado conhecesse o nome dos alunos, os planos de estudo e os professores respectivos, ano por ano. A lei vigente obrigou sempre à existência de um Conselho Científico, em cujo estrito âmbito deveriam ter sido tomadas as decisões que estão na base das notícias. Como obrigou sempre a instrumentos óbvios de registo, cuja efectividade e segurança incumbiam também ao Estado, através da sua função fiscalizadora.

Hoje, Mariano Gago dirá ao país se fecha ou mantém aberta a Independente. Mas não dirá uma palavra sobre o mais importante, ou seja, por que falhou o Estado na sua função fiscalizadora e que medidas tomará, de imediato, para nos garantir a não-repetição destes factos, noutras instituições.

Em 26 de Março escrevi aqui que Mariano Gago parecia observar de longe o velório da Universidade Independente. Hoje vai promover a sua ressurreição ou decretar-lhe o óbito. Por razões que a prudência não me deixa explicitar, antecipo que o veredicto ditará a continuidade, quando só a autópsia poderia ser útil.

Ao que parece, hoje, segunda-feira, também Sócrates poderá quebrar o silêncio a que se tem remetido. Se o fizer, embora tarde, para seu bem e em defesa da dignidade do cargo que ocupa, espero que resulte inequívoco que nunca o ora primeiro-ministro recorreu a expedientes ilegítimos para obter títulos académicos nem, por forma alguma, algum departamento do Estado está refém da Universidade Independente. Porque são essas as questões que interessam ao país, para além da que acima ficou enunciada.

Finalmente, que este episódio sirva para ajudar o país:

1.º Na reflexão, que não está a ser feita, sobre a ânsia de aumentar o protagonismo da iniciativa privada e do mercado na definição das políticas educativas. A saga da Independente deveria levar-nos a ponderar até onde nos pode conduzir a gradual desresponsabilização do Estado e o galopante desmantelamento da escola pública.

2.º A sair do provincianismo que o caracteriza. É tempo de deixarmos de indexar o valor das pessoas à nobiliarquia académica e a retirar razão a Almada Negreiros quando dizia que "... a nossa querida terra está cheia de manhosos, de manhosos e de manhosos, e de mais manhosos. E numa terra de manhosos não se pode chegar senão a falsos prestígios. É o que há mais agora por aí em Portugal: os falsos prestígios!"
Professor do ensino superior