Saturday, December 30, 2006

Fúria legislativa

Hoje, no Público, por José Manuel Fernandes

O Estado quer mandar em tudo, impondo regras disparatadas tanto à poderosa (e odiada) banca, como ao inócuo pescador de fim-de-semana

O mundo era bem mais fácil de compreender se fosse a preto e branco. E Portugal seria muito mais fácil de governar se fosse plano como uma mesa de bilhar e os portugueses medissem todos 1,72 metros e fossem morenos de olhos castanhos. Só que nem a realidade é preto e branco, nem o país é liso e sem rugas, nem somos todos iguais.

Felizmente para cada um de nós e para a humanidade, mas algo que acarreta uma enorme trabalheira. Exige leis e mais leis, pois não há nada como uma boa lei para transformar uma montanha numa planície - ou pelo menos assim pensam muitos governos, o nosso incluído.

A fúria legislativa de tudo uniformizar foi recentemente denunciada, em entrevista ao PÚBLICO e à Renascença, por Joaquim Azevedo, quando lamentou que o Ministério da Educação se tivesse recentemente ocupado da magna questão de regulamentar as dimensões dos cacifos dos alunos nas escolas básicas e secundárias (!!!). Mas a este exemplo kafkiano podemos juntar dois dos últimos dias.

Um fez ontem a primeira página do PÚBLICO: o Governo decidiu impor à banca, em nome da defesa do consumidor, que as comissões para amortização ou liquidação de empréstimos no crédito à habitação fiquem limitadas a 0,5 por cento. A medida é popular, até porque alimenta o mais recente ódio de estimação dos nossos governantes, a poderosa banca, mas ao justificá-la o secretário de Estado da Defesa do Consumidor utilizou o pior dos argumentos: "Queremos que os bancos concorram pelas taxas e não com comissões escondidas." Ou seja, quer que o mundo seja plano e que todos os dilemas tenham apenas uma variável e, para o justificar, utilizou o argumento da alegada falta de transparência.

Na verdade, o Governo não tinha nada que legislar sobre estas taxas, tal como não devia tratar das minudências dos cacifos. Num mercado concorrencial e aberto, como é o mercado bancário, são inúmeras as variáveis que podem influenciar a escolha do consumidor. Uma taxa mais baixa pode ser conseguida alargando o prazo do empréstimo, ou transferindo todas as contas para uma determinada instituição bancária, ou fazendo lá os seguros, ou reforçando as garantias dadas como caução.

Aceitar uma penalização maior por amortização antecipada podia ser uma escolha dos clientes, desde que devidamente informados. Ora em vez de actuar para garantir a transparência da informação e assegurar que as autoridades reguladoras intervêm de forma eficaz, o Governo preferiu diminuir as variáveis para tentar tornar o mundo menos complexo.

Ora como a banca por certo não abdicará das suas margens, o consumidor final pagará noutra factura, pois a única forma de realmente o beneficiar seria garantir que a concorrência aumentava mesmo. Fez-se o contrário, pois é duvidoso que regulamentar tudo, e tornando tudo mais igual, a concorrência aumente.

Mais absurdas são ainda algumas das regras a que terão de se submeter os pescadores de fim-de-semana e que ontem foram tornadas públicas. Só um burocrata que nunca tenha passeado pelos pontões onde se juntam algumas rotundas barrigas com as suas famílias ou alguém que nunca tenha deixado o bolor da sua repartição pública para experimentar descer uma das falésias do nosso litoral para se aproximar dos melhores pesqueiros pode considerar razoável, ou protector das espécies, impor aos pescadores que estes devem guardar dez metros de distância uns dos outros.

E só quem nunca tenha visto como a actividade serve de entretém a muitos reformados de parcos rendimentos pode ter como razoável exigir-lhes as taxas pedidas quando estes pouco mais catarão do que umas sarguetas para fritar e acompanhar com arroz de tomate.

A cultura centralista, regulamentadora e castradora do nosso funcionário público é secular. Alimentada pela filosofia "iluminada" de alguns governantes torna-se num patético pesadelo burocrático.

O que o mundo precisa de saber de nós

Hoje, no Público, por Helena Matos

I
guais a nascer, iguais a morrer. Novo cemitério da Póvoa de Varzim muda paradigma no culto dos mortos. Câmara impõe minimalismo estético, com jazigos estilizados para acabar com "decorações excessivas", assume o vereador. O novo cemitério municipal vai provocar uma alteração radical à forma como os habitantes da Póvoa de Varzim manifestam o seu culto pelos mortos, uma vez que os jazigos vão deixar de ser decorados de acordo com o gosto dos familiares do falecido.

Por imposição da câmara, todos serão cobertos de forma idêntica "estilizada" - uma lápide com a menção ao morto e um jarro para flores - variando apenas a possibilidade, para os enterramentos católicos, de ser colocada uma cruz à cabeceira (...). O vereador com o pelouro das Obras Municipais, Aires Pereira, explicou ao PÚBLICO que o conceito que a autarquia quis que estivesse presente no novo equipamento foi baseado numa frase: "Iguais a nascer, iguais a morrer"."

Esta notícia constava da edição da passada quinta-feira do Caderno Local do PÚBLICO. Confesso que a li mais do que uma vez e ainda não consegui deixar de me interrogar sobre o que levará um vereador a considerar que tem o direito de decidir quantas jarras, qual o formato das ditas jarras, quantidade de inscrições nas campas... podem ou não os seus munícipes fazer? O que conhecerá do mundo, da História e da Arte este executivo camarário?

Num dos livros de epigrafia que folheio enquanto escrevo esta crónica são reproduzidos alguns epitáfios. No "minimalismo estético" adoptado na Póvoa de Varzim não há lugar para a decoração excessiva de muitos deles. Por exemplo para aquele em que, sob a forma de livro profusamente decorado com flores, está esmaltada uma fotografia de criança. Ao lado da imagem lê-se: "Anjo adorado Deus te guarde no seu seio como nós te guardamos no nosso coração. Infinitas lágrimas de seus pais e irmã."

O que levou os pais desta criança a optarem, em 1977, por este excesso decorativo é provavelmente uma forma de viver a morte semelhante à que levou, algures no Sul de Portugal, no tempo do Império Romano, Marcos Comínio Clemente e Vívia Avita a fazerem o seguinte epitáfio em memória da sua filha: "Aqui jaz Comínia Avita, filha de Marcos, de nove anos. Rogo-te traseunte: Diz "que a terra te seja leve"."

Ignora também o executivo da Póvoa de Varzim que os mortos têm vontade. Por exemplo, não é claro que tipo de imaginária será autorizada aos fiéis não cristãos. Por outro lado, o que fariam agora na Póvoa se lhes aparecesse uma família ou grupo de amigos querendo colocar uma lápide onde se lesse, como se lê no túmulo do republicano Borges Grainha, falecido em 1925, "benemérito, professor, apóstolo infatigável da liberdade de consciência e o mais audaz e denodado inimigo da Companhia de Jesus em Portugal"?

O túmulo de Borges Grainha está no cemitério do Alto de S. João, em Lisboa, e felizmente aos mortos que repousam neste cemitério foi-lhes permitido expressar as suas paixões, fés e profundas diferenças nas suas campas. Estrelas de cinco pontas, bustos da República, campas onde se cruzam a pedra bruta e a pedra polida, compassos e até a escolha das acácias, em vez dos habituais ciprestes, para algumas das alamedas são símbolos da pertença maçónica de muitos dos mortos que aí foram enterrados e sinais duma diferença que afirmaram em vida e sublinharam na morte.

As cruzes ou a falta delas, as jarras cheias de flores de plástico, as fotografias esmaltadas, os jazigos monumentais ou as campas rasas, as orações, os silêncios ou os poemas com que se acompanham os mortos são expressões duma diferença e duma individualidade onde é ou devia ser interdito ao poder interferir. Não por acaso os libertos romanos construíam importantes monumentos fúnebres onde se alongavam nos epitáfios.

Afinal esses jazigos, a inscrição neles do nome da família, dos nomes dos seus sucessores e antepassados, representavam para esses antigos escravos uma forma de afirmação da sua liberdade e cidadania. Eram gente.

No meio disto há uma questão aparentemente menor mas que não deixa de me inquietar: quem terá dito ao senhor Aires de Oliveira que o gosto dele é melhor do que o daquelas pessoas que, na sua opinião, optam por "decorações excessivas"? É certo que o vereador Aires de Oliveira não está sozinho nesta espécie de totalitarismo estético aplicado à morte.

De há algum tempo a esta parte instituiu-se que os cemitérios ingleses e norte-americanos são o expoente do bom gosto. Essa preferência pela visão arrelvadamente anglo-saxónica e protestante da morte levou a erros de concepção vários em Portugal. Por exemplo, em Lisboa, no cemitério do Lumiar, os solos obstinaram-se em não se comportar perante o relvoso elemento como os solos da Escócia e os problemas não se fizeram tardar.

Para o fim deixei a questão da igualdade. Não só executivo algum pode ter o direito de nos impor a igualdade como a igualdade é em si mesma algo de profundamente desumano. Dos pretéritos incas aos contemporâneos norte-coreanos o sonho da igualdade apenas gerou poderes totalitários em que o grupo que controla o acesso aos bens exerce um poder sem limites sobre os restantes cidadãos. Por ironia, não só estas sociedades são profundamente autoritárias como extraordinariamente desiguais. E são tão mais desiguais quanto rígidas.

O problema não é existirem ricos e pobres. Aliás, jamais se conseguiu que os pobres ficassem menos pobres confiscando os bens dos ricos. Regra geral esse processo apenas gerou mais autoritarismo, mais pobreza e, claro, o nascimento ou reforço das fortunas daqueles que oficialmente presidem e vigiam a igualdade dos outros.

Contudo, apesar deste lastro de dor, o objectivo da igualdade continua a ser apresentado como algo de desejável, como bem se vê no lema adoptado na Póvoa - "Iguais a nascer, iguais a morrer" - e nas perguntas do Eurobarómetro. O último Eurobarómetro não só concluía que muitos mais europeus apoiam neste momento a Constituição europeia - de Eurobarómetro em Eurobarómetro havemos de acabar a aprová-la por esmagadora maioria! -, como perguntava aos cidadãos se estão dispostos a abdicar de liberdades individuais em troca de mais igualdade e justiça.

Significativo não é apenas que os portugueses sejam o povo da Europa em que mais pessoas estão dispostas a abdicar da sua liberdade individual em detrimento de mais justiça e igualdade. Significativo é que isso tenha sido perguntado, na Europa no ano da graça de 2006.

Donde virá esta peregrina ideia de que menos liberdade individual corresponde a mais e melhor justiça? A liberdade é precisamente a condição sine qua non da justiça. Alguém conhece uma ditadura onde a justiça funcione? Quanto à igualdade, a que título é que ela é apresentada como desejável num Eurobarómetro? Sociedades que apostam na diversidade e não temem a mobilidade social são sociedades que geram riqueza e não pensam que ela se obtém através do igualitarismo.

As outras, as que apostam no igualitarismo, tornam-se rígidas, preconceituosas, asfixiantes. Quer para os vivos quer para os mortos.

Monday, December 18, 2006

A esquerda moderna e os tempos modernos


Santana Castilho

Antes das eleições que lhe deram a maioria absoluta, Sócrates foi questionado sobre a eventual subida do IVA. Respondeu que não perdia tempo com boatos e lembrou que quem havia subido o IVA havia sido o PSD. Mal chegou ao Governo, subiu o IVA.

A bandeira das SCUT foi demasiado agitada por Sócrates para passar de fininho. Em campanha disse branco, no Governo fez preto.

A prioridade de Sócrates, em campanha, eram os idosos. A medida de Sócrates, primeiro-ministro, foi pôr 400.000 mil reformados a pagar mais IRS.

Sócrates na oposição gritou aos quatro ventos que o investimento na saúde era prioritário para o PS. Sócrates, no Governo, disciplinou a hipocondria dos súbditos com a moderação das taxas e rapou do orçamento 0,4 por cento. Ouve o que eu digo, não ligues ao que eu faço!

Sócrates, antes de ser eleito, censurou com denodo o PSD. O PSD tinha feito crescer o desemprego de 4,2 para 6,8 por cento. Sócrates mandou escrever no programa com que se candidatou que o objectivo era recuperar os 150.000 empregos que o PSD tinha perdido. Hoje temos oito por cento de desempregados e as projecções dizem que o número continuará a subir.

Sócrates, tribuno, castigou-nos os ouvidos com a ladainha da prioridade das prioridades para a qualificação dos portugueses. Sócrates, único, tesourou a educação básica e secundária com uma redução orçamental de 4,2 por cento e a superior, certamente por ser superior, com 8,2.
Sócrates, comentador televisivo, teve e usou liberdade de criação.

Sócrates, legislador, propõe que os jornalistas não se possam opor a que nas suas obras sejam introduzidas modificações por parte dos respectivos superiores hierárquicos e que os patrões as possam usar fora dos contextos para que foram produzidas.

Sócrates, no oásis das promessas de campanha, fixou como meta outorgar à cultura um por cento do Orçamento do Estado. Sócrates, no deserto economicista do Governo, cortou 7 por cento do respectivo orçamento e transformou o um por cento da meta nos miseráveis e vergonhosos 0,1 por cento do PIB.

Não sei se Sócrates, na oposição, teve tempo para assistir a um simples concerto de pífaro. Mas sei que Sócrates, no Governo, assassinou a Festa da Música.

Quem é afinal este Sócrates? É, pelo menos, um homem de sorte: foi eleito primeiro-ministro, com maioria absoluta, porque estava no sitio certo quando uns fugiram e outros caíram; conseguiu sem esforço o sonho de Sá Carneiro, numa versão moderna da alegoria de "Dupond et Dupont"; é pai da "esquerda moderna" portuguesa; e acaba de ver o país que governa guindado à invejável 19.ª posição das democracias plenas, extraídas do escrutínio de 167 países.

Sinais dos tempos modernos, a que definitivamente não quero pertencer, e da democracia ocidental em que não me revejo.

Em nome da sacrossanta economia de mercado, essa tal "esquerda moderna" vai transformando-nos numa sociedade de mercado. Mixórdias de pensamento e processos, desde que encomendadas em outsourcing ou vindas de fora, impõem-se irremediavelmente e são pagas a ouro, que para tal não há crise. A onda chegou ao ensino superior.

Dois relatórios de dois estudos encomendados a duas instituições (ENQA e OCDE) poderiam bem ser dispensados. Tudo o que dizem, com utilidade, já se conhecia. Muito do que propõem é disparate e resulta da ignorância que têm sobre um país que avaliam com sobranceria. A ENQA conduziu o processo de forma lamentável e adoptou práticas fortemente incorrectas. A OCDE já cansa.

Se muito tem de aceitável, muito tem de questionável. Não esconde que está ao serviço da globalização económica e que as suas recomendações (que são sempre as mesmas) subordinam-se ao que considera serem as exigências da economia de mercado.

Recordam-se da chamada directiva Bolkenstein, por enquanto abandonada, segundo a qual os trabalhadores do espaço europeu seriam pagos nos países da prestação do trabalho segundo os valores praticados no país de origem (um canalizador suíço e um canalizador polaco, ambos a trabalhar na Suíça e a fazer exactamente a mesma coisa, poderiam ganhar 20 o primeiro e 2 o segundo)? A OCDE aplaudia! Têm presente o CPE de Villepin (tratamento completamente desregulado dos jovens à procura do primeiro emprego) retirado por força da indignação que suscitou? A OCDE defendia-o com paixão!

Vejo com lástima Mariano Gago associado a este novo-riquismo e complacente com humilhações públicas gratuitas e dispensáveis.
Professor do ensino superior

Friday, December 8, 2006

Um ministério?

No Expresso de hoje, o seguinte texto de Joaquim Manuel Magalhães:

"Quando andava a estudar nos dois últimos anos do liceu (os 6.º e 7.º), aqueles a seguir aos quais poderíamos ingressar na universidade, estudei Literatura Portuguesa. O 6.º ano foi das Cantigas Medievais até não sei onde, rebentando-nos a cabeça com sintaxes.

A senhora morreu ou mudou de terra. No ano a seguir foi minha professora Judite Beatriz de Sousa. Não sei o que aconteceu, mas a literatura tornou-se o centro da minha despedida da adolescência. Ou sei: aquela mulher obrigava-nos a ler, pegava no que líamos e elucidava-nos do que estava envolvido naquilo que líamos, numa linguagem exacta, clarificadora e sempre disponível para nos falar de um outro livro ainda.

A Literatura Portuguesa nunca mais me abandonou: e era tão-somente aquilo - ler, comentar, comparar com um outro texto, inscrever numa época bem delineada, conseguir construir com algum esmero algumas frases.

A sedução do ensino depende do professor. Eu dei este meu exemplo. Ainda deve haver hoje quem possa dar exemplos assim. Em breve já não haverá. Não depende somente do aluno ou das regras de uma qualquer instituição escolar. Um professor só é bom se, além do programa, nunca parou de estudar, nunca perdeu a curiosidade, sempre continuamente se informou não dos modos como ser professor mas dos âmbitos do saber a que se encontrava ligado.

Para isso precisava, antes de tudo o mais, de ter uma ligação afectiva à matéria que ensinava, dinheiro para sempre ir comprando livros sobre essa matéria, tempo para os ler.

Esta verdade óbvia não a tem ao seu dispor quem é mal pago, quem não tem tempo livre para, fora da escola onde ensina, se sentar a ler/estudar dentro de uma vida em que não chegue a casa estupidificado por horas inúteis encerrado num estabelecimento enlouquecido por comissões executivas que são «cães» de qualquer ministério que surja.

Poderão alguns professores não gostar do que fazem, admito. Mas o melhor é afastá-los dos alunos depois de umas horas obrigatórias de contacto; e não forçar os alunos a estarem continuamente cercados por quem gostaria de ter outra profissão. Como em tudo, aparecem sempre professores alertados e competentes que salvam a formação de um adolescente se não andarem a arrastar-se de cansaço e de revolta por corredores em que já nem conseguem pensar.

O ensino secundário português começou a ser estragado por Veiga Simão. Culminou com Roberto Carneiro e os seus esquecimentos bem calculados do ensino público. Tornou-se uma espécie de rodilha mal cheirosa, de esfregadela em esfregadela, atirada ao caso para entre um lixo inominável por todos estes ministros de que ninguém lembra o nome, como eu nem sequer sei o da actual. Sei que é uma pobre senhora que não vale a pena, com uma voz desgastada, empurrada a destruir a quase final hipótese de haver qualidade no ensino secundário português.

A prioridade do ensino deixou de ser transmitir saberes. Hoje culmina em planificações de um pouco de vazio no máximo de tempo possível. Ouvindo-se a palavra planificar, imediatamente sabemos que as chamadas pedagogias e didácticas passaram a ter o domínio sobre os conteúdos de cada disciplina e gerou-se uma complicação de saberes sem saberes, que consiste na aplicação de umas grelhas às quais se junta um cuspo de meditações bacocas nunca se percebe bem sobre o quê.

Um professor de biologia tem de saber biologia? Não. Tem de saber planear umas aulas que encaixem num programa oficial que enumera o que da biologia basta saber. Houve uma conjura que não foi só desta situação que se chama ministra; resultou de vários anos de fermentações bem calculadas de que ela se apoderou.

Percebi com clareza o desastre que se aproximava numa reunião em que estive, por um enganoso convite, com vários professores universitários que se especializavam em ensinar a ensinar o estrito das suas matérias. Não foi por acaso que olhares de quem conhece os corredores onde andam os apaniguados do ministério se trocaram entre um de matemática e alguém de português. Não foi por acaso que ninguém se preocupou com os conteúdos dos saberes. Apenas se ouvia zumbir ou silvar (por entre torvos cálculos) umas vagas conjuras que pouco se entendiam.

Os olhares, vi eu, circulavam entre essas pessoas de duas das mais centrais disciplinas, como quem suspende por momentos uma conjura escura. Já tinham tudo combinado. Eu rapidamente me vim embora, deixando gente a falar sem compreender que tudo não passava daquelas miradas baixas, iguais ao pior pó do chão.

Será ministério o que podemos chamar ao mero cruzamento (basta que somem as disciplinas controladas por esta espécie de repelência) de panóplias estratégicas?

Voltando à Literatura Portuguesa. Suponho que vai ser difícil alguém encontrar outra Judite Beatriz de Sousa. Ela está cansada de horas inúteis dentro de escolas imbecilmente obedientes, não só à ministra de agora, que em breve será substituída por outro anónimo qualquer, mas a esta imundície que a todos empurra.

Beatriz de Sousa anda perdida com estratégias, planificações e modos de lhe destruírem o que ela podia oferecer ao ensino do português. Tem esta nova gramática imbecil pela frente, que se contorce numa pestífera linguística que vai tapar a beleza de quaisquer palavras com novas imbecilidades gramaticais, ainda mais idiotas do que a mecânica aplicação das anteriores. (Pensar nas gramáticas que os ingleses têm, tão linearmente compreensíveis.)

Reduziram a qualidade e a necessidade de um texto à noção de que tudo é texto - uma merda qualquer, um jornaleco qualquer - para aí exercitarem o seu ódio ao que não seja o repelente tecnicismo. A par desta enxúndia, por todo o lado se instalou a rameira da didáctica. Mas terá ainda para destruir? Para destruir há sempre algo mais.

O pior é que reconstruir o que ficou coberto pela lama mais imunda demora muito mais do que o desaparecimento desta gente e do que ela representa. Pode demorar um tempo que já nem os alunos de agora alguma vez vejam.

Da filosofia à educação visual, da língua estrangeira à química, de todos a cada um, pergunte-se: têm vontade de sempre ler e estudar o que lêem? Têm dinheiro para isso? Têm tempo vosso para poder dar um alto conseguimento aos vossos alunos? É da educação o vosso ministério?"

Thursday, December 7, 2006

Estudos denunciam selecção de alunos nas escolas públicas

Estudos denunciam selecção de alunos nas escolas públicas
Isabel Leiria

Investigador diz
que a situação, gerada
por professores e pais,
é "democraticamente inaceitável"

O processo é difícil de avaliar porque "não é assumido pelos protagonistas". Mas são vários os estudos que comprovam que as escolas públicas fazem uma selecção social dos seus alunos.

Escolhem quem fica, quando a procura supera a oferta e fazem-no através da constituição de turmas que agrupam os alunos consoante a origem social e trajecto escolar, denunciaram ontem dois investigadores responsáveis pelo trabalho Diversidade e desigualdade na escola, apresentado em Lisboa.

"O sistema discrimina os alunos por escolas, por turmas e por vias de ensino, o que aumenta os processos de desigualdade e guetização social", defende Pedro Abrantes, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE). Isso mesmo constataram diversos estudos feitos no âmbito deste centro de investigação. Parte foi sintetizada no trabalho ontem apresentado, de Pedro Abrantes e João Sebastião, também investigador do ISCTE e coordenador do Observatório da Violência Escolar.

Uma das investigações, da autoria de João Sebastião e Sónia Vladimira, concluída em 2005, analisou os resultados dos alunos de quatro escolas públicas da mesma área geográfica e com o mesmo nível de ensino. Para além da composição social ser distinta - duas tinham maioritariamente jovens de meios sociais favorecidos e pais com altas habilitações e as restantes tinham sobretudo filhos de operários e empregados -, os resultados acompanhavam essa diferenciação.

No estabelecimento de ensino em que os pais dos alunos eram sobretudo "profissionais e dirigentes" o número de estudantes que aos 15 anos tinha chumbado mais de uma vez ficava-se pelos sete por cento. Na escola constituída maioritariamente por filhos de "operários e empregados" a percentagem disparava para os 49 por cento. Na primeira, 82 por cento dos alunos nunca tinham ficado retidos; na segunda acontecia com 33 por cento.

Numa outra investigação, realizada em 2001, numa escola básica do concelho da Amadora, os autores Joana Campos e Sandra Mateus constataram a mesma "segmentação dos alunos de acordo com as suas trajectórias escolares e origem social".

Interesses particulares

"Dentro da própria escola criaram-se universos paralelos - uma turma de alunos de classe média, com trajectórias de excelência e uma outra de estudantes de um bairro social, com trajectórias de fracasso - e que nunca se encontravam devido a horários muito distintos", descreve Pedro Abrantes.

Questionados sobre a forma como tinham chegado à conclusão de que as escolas "fabricavam as turmas", João Sebastião invocou pesquisas e descreveu um caso que, por motivos familiares, conhece particularmente bem.

"É uma escola em que de manhã só há turmas de alunos brancos e à tarde estão todos os filhos de africanos, o único aluno deficiente que havia, os que vieram do jardim de infância e foram sinalizados como tendo problemas comportamentais e aqueles que vinham de fora e o estabelecimento de ensino não os conhecia. Isto é prática corrente."

Outro "método" com que diz já se ter deparado traduz-se na inscrição prévia, em Junho, de todos os estudantes da zona administrativa adstrita à escola, incluindo dos bairros sociais. "Chega-se a Setembro e a direcção afirma que afinal não tem vagas e que os alunos têm de ir para a escola no fim da rua. Numa o insucesso ronda os sete por cento e na outra é de 30 por cento."

O investigador afirma que a situação decorre muitas vezes de "interesses de professores, que querem os melhores alunos e poucos problemas, e da própria pressão dos pais, que querem o melhor para os filhos". E são os encarregados de educação das classes médias, altas, "com melhor conhecimento do funcionamento das escolas, que têm essa capacidade para pressionar".
João Sebastião considera a situação "democraticamente inaceitável e até inconstitucional" e lembra que a criação de turmas socialmente seleccionadas "tem consequências importantes para a aprendizagem". "Este é um processo relativamente oculto, que acontece quando a escola está fechada e em que nenhum autor se assume como protagonista", conclui.