José Pacheco Pereira hoje no Público:
"Antes de se falar da morte de Saddam, o que "fala" nas imagens que vimos na televisão é a morte. No nosso mundo liofilizado europeu, a Ceifeira vê-se pouco. É escondida nos hospitais, disfarçada em quartos obscuros, cuidadosamente retirada da nossa vista. Ali, numa qualquer instalação policial ou militar, com o ar frio do cimento nu, às horas perigosas da madrugada, um homem como nós defronta tudo. Como nós. Ali, naquele momento, não há qualquer distinção. É ele e somos nós. O morto que ainda está vivo, anda, fala. Dead man walking, como se diz nos corredores da morte texanos.Não há diálogo com a Ceifeira, não há palavras que possam ser ditas. Saddam portou-se com dignidade, embora eu não saiba bem o que significa esta frase, ou sequer se tem algum sentido dizê-la. Tivesse ele chorado, implorado, ou exibido um medo evidente e haveria alguma diferença? Havia para nós, o medo dele seria ainda mais o nosso. Assim como foi, alimenta a nossa vaidade, de que possamos também defrontar assim a Ceifeira e por isso ter essa "dignidade", forma última da nossa humanidade, prometeica a seu modo arrogante, diante do executor humano e divino.
Os brutos e os cruéis também podem ser dignos face à morte, isto, para quem saiba alguma coisa de história, não é novidade nenhuma. Aquele homem ali no cadafalso não era um homem comum, nem a morte lhe era alheia. Bem pelo contrário, Saddam matou, mesmo com as suas mãos, e deixou atrás de si um rastro de assassinatos, crimes e violências que o colocam entre os grandes criminosos políticos do século XX, numa indiferença brutal.
Naquela sala, ele estava no seu ambiente, ele melhor que ninguém percebia todos os papéis, dos carrascos, da vingança tribal e religiosa, da pura habituação à morte violenta, o convívio próximo de muitos iraquianos com a Ceifeira, mais que próximo, íntimo. Se alguma coisa o podia surpreender, era até a relativo carácter asséptico daquela execução, tão encenada, limpa, sossegada. As coisas depois perderam um bocado o pé, com os insultos e os gritos, mas tenho a certeza que foi incomensuravelmente mais pacífica do que os hábitos da casa.
Não foi o espectáculo que foi brutal, foi a morte, como é sempre, aqui com a agravante de ter sido decidida por homens e não pelo fluir do destino. Se há adquirido civilizacional numa parte do "Ocidente", é que os nossos governantes máximos, políticos, juízes, polícias, perderam o direito de decidir sobre a vida e a morte dos que os afrontam, quer a eles, quer à sociedade. O fim da pena de morte é um adquirido crucial, frágil como todos, mas para já garantido em grande parte da Europa, embora mais recentemente do que se pensa.
Mesmo assim, o assassinato político que acompanhou a nossa história, e que ainda há poucos anos matou Ceausescu e a mulher (esqueceram-se dos Ceausescu os jornalistas que repetiam na sua ignorância que no século XX "nenhum" ditador conheceu o destino de Saddam, pensando certamente que foi esta a "justiça" que faltou a Pinochet, que muitos que choram por Saddam desejavam ver morto), parece uma excepção, não o sendo. Que o digam os presidentes tchetchenos.
Mas uma coisa é ser radicalmente contra a pena de morte, como sou, outra é usar, com a "má fé" que Fernando Gil tão bem retratou, essa condenação como mais um argumento contra a invasão americana do Iraque. A discussão da invasão americana e dos sucessos que se lhe seguiram é hoje tão dominada pela irracionalidade e pelo "pensamento único" que nos impede pura e simplesmente de pensar.
Aliás, nunca encontrei melhor exemplo do que possa ser o "pensamento único" do que a completa unanimidade agressiva sobre os eventos do Iraque. Bastava sequer ouvir a cena macabra dos últimos momentos de Saddam, para perceber como para os iraquianos presentes, entre os quais o próprio Saddam, o que está em jogo está muito para além do binómio ocupação-resistência e já lá estava muito antes da invasão."
Se se quer discutir a sério o papel político da execução de Saddam, então é preciso em primeiro lugar libertarmo-nos de usar a condenação da pena de morte como argumento, porque ele é em si muito irrelevante no Iraque, nem muda nada que não estivesse já mudado e infelizmente para pior. A execução de Saddam foi mais um episódio de uma guerra civil larvar que atravessa o Iraque, e é como tal interpretada pelos iraquianos, que a festejaram do lado xiita e que a condenaram do lado sunita, apenas e só nesse contexto.
E é por ter sido mais um episódio da guerra civil que a desaparição física do ditador em nada contribui para a acalmia do país, e muito menos para a democracia. Mostra também como os americanos, em particular, perderam o controlo do processo e têm um dilema crescente: ao passarem o poder para os iraquianos, tem que aceitar uma política interna cada vez mais dominada pelo conflito civil entre xiitas e sunitas, com os curdos a desejarem estar noutro mapa, de preferência com o petróleo a que acham ter direito.
Se não se está de "má fé", então tem que se discutir as alternativas para a coligação após a invasão. Os EUA e os seus aliados sabiam que iam defrontar no Iraque o problema de capturar vivos os principais dirigentes do regime baasista. Não era nada que não tivesse vários precedentes recentes, como o da Alemanha e Japão no fim da II Guerra, ou dos dirigentes sérvios na guerra jugoslava.
O precedente alemão e japonês foi resolvido com tribunais como o de Nuremberga, que acabaram na condenação à morte de muitos altos dignitários nazis, ao exemplo do que aconteceu em muitos outros países da Europa, onde uma vaga de julgamentos ou de decisões extrajudiciais levaram à execução, muitas vezes sumária, de milhares de colaboradores dos alemães.
Se no Iraque fosse seguido o mesmo exemplo, seriam americanos e os outros membros da coligação a julgar Saddam não se sabendo com que base jurídica. Se fosse com base na legislação nacional iraquiana, ou na base da legislação de Nuremberga, Saddam seria quase de certeza condenado também à morte.
Havia a alternativa de o julgar num tribunal como o de Haia, para onde foi enviado Milosevic. Mas o consenso que havia para a Jugoslávia não existia para o Iraque e um tribunal com um apoio internacional dúbio seria sempre visto como um tribunal americano disfarçado. Era provável que neste caso, se o julgamento fosse na Europa, Saddam escapasse com vida, mas ficaria preso até ao fim dos seus dias. Não custa imaginar o clamor que, quer a solução tipo Nuremberga, quer a de um tribunal internacional levantariam, para além de poder reforçar a ideia de uma ocupação estrangeira permanente do Iraque.
Havia uma outra solução, a de levar Saddam para os EUA, como aconteceu com Noriega, mas também aí não seria difícil imaginar o clamor internacional e o impasse jurídico a que se chegaria, pois também na lei americana os crimes de Saddam implicavam a pena de morte.
Apesar de tudo, visto pelo princípio dos "prognósticos só no final do jogo", qualquer destas soluções seria melhor, agora que sabemos o que aconteceu. Mas é preciso entender que os motivos dos americanos, como acontece com algumas das maiores asneiras cometidas no Iraque, resultam de uma mistura de boa vontade ingénua e negligência na análise cuidada dos riscos. Ninguém que quer a democracia pode deixar de admirar a enorme ingenuidade americana, que é o melhor da América, e nalguns caos, o pior.
Vistas as coisas hoje percebem-se as intenções dos EUA: usar o julgamento de Saddam como uma catarse nacional para o Iraque, permitir um módico de justiça (e por muitas críticas que se possam fazer ao julgamento, ele esteve a milhas do que é habitual na região) e oferecer aos iraquianos um ponto zero de partida para a sua democracia. Só os americanos podiam alguma vez pensar nisto a sério, mas não há razão para duvidar das suas intenções, de que, bem sei, está o inferno cheio.
Havia, aliás, uma maneira não americana, nem ingénua de pensar esta questão. Estaline era especialista nessa maneira, que certamente seria muito mais realista e eficaz: a de que "acabando-se com o homem, acabava-se com o problema", mas não me parece que seja esta a alternativa em que alguns críticos do que se passou estejam a pensar. Historiador
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