Wednesday, January 17, 2007

Primeiro filosofar

No Público de hoje, Eduardo Prado Coelho

o fio do horizonte


Éverdade que a tradição cultural portuguesa sempre foi no sentido da história e não da filosofia. E que mesmo no domínio da filosofia foi a marca da filosofia francesa que predominou (Bachelard, como exemplo) e não a filosofia de cariz analítico (Popper). Daí que certos nomes famosos da filosofia contemporânea nunca tenham sido traduzidos (Quine ou Michael Dennett, também por exemplo, mesmo que alguns tenham sido objecto de extensos e bem organizados trabalhos: Sofia Miguéis é um caso).

De qualquer modo, a recente ideia do Ministério da Educação de manter o ensino da Filosofia, mas não o tornar obrigatório para o exame final parece-me desastrosa. No Expresso, António Guerreiro escreveu um magnífico texto sobre este tema. As consequências são múltiplas: os departamentos de Filosofia tenderão a fechar por escassez de participantes. E teremos esta aberração de uma Faculdade de Ciências Sociais e Humanas não ter Filosofia!

Deveria apoiar-se todo o sentido do secundário nessas duas grandes disciplinas da arte de pensar: a Matemática e a Filosofia. Elas são complementares, por muito que pensemos que são antagónicas. Essa complementaridade é o essencial da filosofia cognitiva dos nossos dias. Depois cada um reforça uma das múltiplas inteligências (Howard Gardner) que possui: uns pensam com números, outros com imagens (cinema e televisão), outros ainda com sons (música e dança). O que é que estamos a verificar com as actuais e infelizes disposições do Ministério da Educação nesta matéria?

Vemos que é uma concepção do mundo para a qual a filosofia estabelece uma fronteira de resistência. João Lobo Antunes fala com extrema clareza na importância da neurofilosofia (fê-lo de um modo extremamente veemente no programa Câmara Clara de Paula Moura Pinheiro). Nuno Crato, esse combatente indomável contra o "eduquês, considera importantes as relações entre a ciência, em particular a matemática, e a filosofia.


A que é que se resiste? A algo de particularmente nefasto que resulta daquilo a que de um modo sumário se chama "economicismo". Ao ensino superior recomenda-se hoje que sirva o mercado e que se concentre nas disciplinas que apontam nesse sentido. É triste, é mesmo desolador. Vamos ter uma filosofia em Portugal que se restringe a pequenos círculos de amigos que pretendem falar de metafísica: nem sequer é Carnap contra Nietzsche. É Berlusconi que espreita a cena.

É claro que todos nós sabemos que a filosofia é uma coisa, que, se em certos aspectos pode ser útil (nas questões de ética, por exemplo, fundamentais para entendermos os mecanismos da corrupção), noutros é decerto totalmente inútil. O domínio da metafísica vai nesse caminho: tudo aquilo que parece resposta é a rampa de lançamento para uma interrogação. Dizia Valéry que a filosofia consiste em pensarmos que aquilo que foi pensado não foi suficientemente pensado.

Falar nisto tem uma razão de ser: nós sentimos que estamos hoje num processo de barbarização que parece sem fim. Tanto mais grave entre nós quanto a modernidade nunca chegou a enraizar-se suficientemente. Mas vemos indícios disto em todos os domínios: desde Filipe la Féria no Teatro Rivoli em nome do público que vai vir meses a fio (e, no entanto, sempre que lá fui vi salas com bastante gente) à televisão que aposta em telenovelas, umas melhores outras piores, mas que relega os programas culturais (como, por exemplo, esse apaixonante diálogo entre Agustina Bessa Luís e Maria João Seixas) para os doentes de insónias, às salas de espectáculo - talvez com a excepção das artes visuais.

Donde, é preciso resistir. Estará o Ministério da Educação ainda em condições de alterar a sua decisão?

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