A marca BHL
A sua fama, naturalmente, precede-o. Pelas melhores e pelas piores razões. A sua obra de ensaísta, divulgador e jornalista é vasta, toca temas de grande actualidade numa escrita poderosa. Material de "best-seller". Em contrapartida, o estatuto de "estrela intelectual" irrita. Compôs uma figura - são famosas as suas camisas brancas de colarinho aberto. Cultiva um estilo que convém aos tempos hipermediatizados em que vivemos. Criou uma marca: Bernard-Henri Lévy já é apenas BHL. Um caso que talvez só seja possível num país onde os intelectuais têm um lugar à parte.
BHL escreve nos jornais, é omnipresente nas televisões, desloca-se pelo mundo, interpela os poderes em nome das suas causas, aliás, todas louváveis. A sua profissão: militante dos direitos humanos e combatente dos totalitarismos. Mais do que filósofo, embora tenha estudado filosofia na prestigiada École Normal Supérieur, discípulo de Althusser e de Derrida. O seu nome está ligado ao movimento dos Novos Filósofos, nascido em França em 1976. Ele e os seus amigos, como André Glucksmann, vinham da extrema-esquerda e denunciavam o compromisso da esquerda francesa com o Gulag soviético.
Os media adoram-no e percebe-se porquê: cada resposta sugere um título, mesmo que às vezes nos deixe em suspenso, à espera de mais. Os académicos acusando-o de superficialidade. Com
algum desdém, alguns jornalistas dizem que os seus livros de reportagem são "romanquêtes". Por exemplo, aquele que escreveu em 2003 sobre Daniel Pearl, repórter do "Wall Street Journal", raptado e decapitado no Paquistão por um ramo da Al Qaeda ("Qui a tué Daniel Pearl"). A verdade é que o seu método é eficaz: vai lá sempre, aos locais onde se encontra a barbárie, seja a destruição de Sarajevo ou a limpeza étnica no Kosovo.
A sua última grande aventura foi em Darfur. Entusiasma-se quando discutimos a questão já com o gravador desligado. Conta como entrou clandestinamente, ignorando as autoridades de Cartum, o único jornalista ocidental a fazê-lo nos últimos tempos. É esta hoje a sua grande batalha contra a indiferença. Nisso, é absolutamente consequente.
Politicamente, declara-se de esquerda, embora de uma esquerda rara em França. Gosta da América como se verá nesta entrevista, é pró-israelita e mais ou menos liberal. Três pecados imperdoáveis. Vota Ségolène. TdeS
Temos a cabeça cheia de clichés sobre a América e são todos falsos
Teresa de Sousa
Fomos encontrá-lo num hotel de luxo, em Lisboa, onde passou três dias disponível para a imprensa portuguesa. A editora Asa acaba de publicar o seu livro mais recente, "American Vertigo", resultado de um longo périplo pelos Estados Unidos a convite da revista "Atlantic Monthly" para seguir as pisadas de Alexis de Tocqueville, o grande sociólogo francês que escreveu, no século XIX, a obra mais emblemática sobre a América - "De la Democratie en Amérique".
A viagem de Bernard-Henri Lévy, aliás, BHL, 173 anos depois do seu compatriota, foi realizada em 2004, em plena campanha para a reeleição de Bush. Por estrada, quase sempre. Este-Oeste, Norte-Sul, ao estilo de Kerouac, sem paragens certas nem horários a cumprir. "Foi a estrada que fez este livro (...), e que inspirou esta obra incompleta de um possível retrato da América".
"American Vertigo" foi publicado primeiro nos EUA, no início de 2006, e mereceu mais críticas do que elogios. A nossa conversa começa por lá e termina, obrigatoriamente, do lado de cá - em França.
Depois da sua longa viagem pela América, mudou as ideias que tinha?
Mudei. Fiz o que muito pouca gente faz: atravessar o país em todos os sentidos por estrada, olhar para tudo, para tentar testar os clichés contra a prova do real. Todos nós temos a cabeça cheia de clichés quando se trata da América. Os anti-americanos têm clichés, os pró-americanos também. Todos os clichés são falsos.
Uma experiência como esta transforma-se numa máquina de quebrar clichés. As minhas ideias mudaram.
Por exemplo?
Pensava que a América era um país imperial. A ideia merece ser revista. Pensava que a América não tinha sistema de saúde e de segurança social. É mais complicado que isso. É diferente do nosso, uma mistura de publico e privado, mas existe. Pensava que a América era um país materialista e é provavelmente o país mais religioso do mundo. Pensava que o Sul eram os Estados da segregação, onde os negros teriam ainda um longo caminho a percorrer para cumprir o programa de Martin Luther King. Descobri que o caminho já tinha sido percorrido no essencial. Cada passo foi uma surpresa.
Esta surpresa confirmou a ideia de que europeus e americanos continuam a pertencer ao mesmo planeta ou viu uma América que diverge cada vez mais de nós?
O que vi e o que discuti com inúmeros intelectuais, de direita e de esquerda, conservadores e democratas, é que há, de facto, uma tentação de largar as amarras da Europa. Mas direi que a questão que acabou de colocar é aquela que se colocam a eles próprios todos os americanos. A questão central é essa...
A relação com a Europa?
O que é que fazemos com a Europa? A Europa é a nossa mãe, mas como é que traduzimos isso nos dias hoje? Como é que resolvemos o nosso complexo de Édipo ou de Electra? Matamos ou não a mãe? É a questão metafísica e, consequentemente, política.
Por que é que se coloca agora? Porque a guerra-fria terminou? Porque o mundo está a mudar?
Porque a guerra-fria acabou. Porque há uma mudança da população americana com a chegada dos hispânicos. E pela proximidade à Ásia através da costa do Pacífico. E também por causa da psicologia dos homens. O complexo de Édipo existe nos humanos como nas colectividades. Nós, na Europa, temos o complexo ao contrário: o ódio da mãe pela filha. Que é o anti-americanismo. Mas, se tivesse de fazer uma aposta, apesar de tudo diria que não haverá ruptura entre a América e a Europa. A presença europeia é demasiado forte, os valores europeus impregnam a sociedade americana de forma profunda e creio que, sem isso, a América seria outra coisa.
Há passagens no seu livro dedicadas a descrever o Presidente americano. Pelo menos inicialmente os europeus não compreendiam essa escolha...
Olhe para o seu país. Uma civilização, um império, uma cultura e ofereceu-se a si próprio durante décadas dois cretinos: Salazar e Caetano. Isso não quer dizer nada. Na França é o mesmo. O que eu creio, realmente, é que George W. Bush é um parêntesis. Temos os olhos fixos em Bush, ficamos completamente obnubilados por ele, como se ele fosse a verdade da América. Ora, não é nada disso.
Mas é essa a América que temos visto, dos "neocons", do fundamentalismo religioso...
Isso quer dizer que não compreendemos nada.
Encontrou Barak Obama em 2004 e diz no seu livro que é preciso prestar-lhe atenção. Hoje todos nós lhe prestamos imensa atenção.
Creio ter sido um dos primeiros europeus a imprimir o nome de Barak Obama e a fazer o seu retrato. Logo que o vi, senti imediatamente que era uma personagem considerável e uma das faces possíveis da América.
Diz que Obama é um negro branco.
O que digo é que a força de Obama reside no facto de não ser um descendente de um escravo do Sul. O seu pai era queniano. E isso muda tudo. Quer dizer que ele não reenvia aos outros americanos uma imagem culpabilizante. Não lhes reenvia a imagem do país da segregação, do Ku-Klux-Klan, do esclavagismo. É um negro que joga na sedução e não na culpabilização. A sua força está aí.
Escreve também bastante sobre a sua experiência com as comunidades árabes, sobre o facto de se sentirem americanos, ao contrário do que acontece na Europa.
Os americanos inventaram um sistema de cidadania, um modo de regulação dialéctica entre o particular e o universal, entre a origem e o destino, que funciona bastante bem. Na Europa e na França teríamos todo o interesse em inspirarmo-nos nisto.
Podemos voltar aos valores? Há hoje na Europa a ideia de que, depois de Guantánamo e de Abu Ghraib, a democracia americana não funciona. Visitou Guantánamo. Contesta essa ideia no seu livro.
Fui ver Guantánamo. É verdade que é inadmissível, que é um escândalo, que é uma zona de não-direito e que é indigna de uma democracia. Mas não é o Gulag. E os que nos vêm dizer que Guantánamo é o Gulag americano são cretinos, não têm a mínima ideia do que é o Gulag. O Gulag significa dezenas de milhões de mortos. Guantánamo significa centenas de prisioneiros sem direitos que não são bem tratados, sem dúvida, em alguns casos torturados. Eis um caso em que está diante de um verdadeiro cliché.
Compara a denúncia de Abu Ghraib com a denúncia do que se passou com a França na guerra da Argélia. Diz que eles foram mais rápidos a denunciar e a condenar.
A grande diferença entre a França e a América é que a França levou 40 anos para aceitar o seu Abu Grahib e a América levou três dias.
Porquê?
Porque a América é uma democracia mais viva que a França. Bastaram 48 horas para a América ser informada sobre Abu Ghraib, ficar horrorizada com Abu Ghraib e condenar Abu Ghraib. Há pouco falávamos de Obama e de Hillary Clinton. A América pode eleger no próximo ano uma mulher ou um negro. Portugal estaria preparado para isso?
Mas a França está, pelo menos no que diz respeito a uma mulher.
Mas está pronta a eleger um negro? E mesmo uma mulher? Vamos ver. Espero que sim. Mas olhe para a maneira como ela é tratada, a nossa mulher, Ségolène. Os insultos as insinuações.
Conversou longamente com algumas das figuras mais conhecidas entre os neoconservadores. As suas origens são as mesmas que as deles: vieram da esquerda, são anti-totalitários, vêm a democracia como valor universal. Também costuma apelar às democracias para agirem contra os tiranos. Qual é a diferença?
A diferença é que continuo a ser de esquerda e eles não. No plano moral, não há diferença. O problema deles não é serem imorais. Moralmente tinham razão. Claro que é preciso derrubar um ditador. Claro que a democracia é boa para todos os povos. Claro que os Direitos do Homem não são reservados aos ocidentais. Apenas há diferença no plano político. A responsabilidade de um Estado não é apenas ter razão nos princípios mas também ganhar no plano político. A guerra no Iraque, a maneira como foi conduzida, fez com que estivesse antecipadamente perdida. Para ganhar é preciso um consenso internacional, aliados no terreno e um plano de reconstrução. Foram as três coisas que faltaram à América.
Eles fizeram no Iraque os mesmos erros que fazem na América. Pensam que o Estado serve de pouco para combater a miséria, para os cuidados de saúde, que é preciso deixar o mercado livre funcionar. Fizeram o mesmo erro no Iraque: bastava derrubar Saddam e, depois, a Providência democrática faria o resto.
Diz no seu livro, já disse aqui, que a América não é uma nação imperial. Mas, depois da guerra-fria, começou a pensar-se como império.
Não tenho a certeza disso. A questão imperial é uma questão nossa, dos europeus. Fomos nós as nações imperais. O imperialismo é o nosso fardo. A América não tem um imaginário imperial, isso é falso. A verdadeira tentação da América, a sua tendência pesada e, talvez, o maior perigo é deixar cair o mundo... O isolacionismo.
Espero que a queda dos neoconservadores não tenha como efeito deitar fora o bebé com a água do banho. Abandonar toda a espécie de preocupação com o mundo.
Como é que explica que a ideia de uma Europa como anti-América seja sobretudo uma ideia francesa?
Não, não é apenas francesa. É verdadeira na Alemanha, na Espanha, na Itália, talvez em Portugal... Mas é verdade que nasceu em França. O anti-americanismo era uma ideia de extrema-direita...
Agora é de esquerda.
Se o anti-americanismo se transformar no programa da esquerda, isso será muito grave porque, na sua substância, é uma ideia fascista. É o reflexo dos fascistas franceses dos anos 20 e 30 face a uma nação democrática. É a reacção dos nostálgicos da nação orgânica, a nação baseada numa raça, num sangue, etc..., face à nação rousseauniana, que é a América. A América é uma incarnação do sonho de Rousseau, gente que vem de toda a parte e que, por um acto de vontade, decide fazer uma nação. Isto, os contra-revolucionários franceses do século XIX e, depois, os fascistas dos anos 20, viam como o seu o pior pesadelo. É daqui que nasce o anti-americanismo em França. Que, depois, passa para a Alemanha, como os românticos alemães, com os ideólogos nazis, com Heidegger. Ver uma parte da esquerda europeia ligada a este anti-americanismo de origem fascizante é algo que me aterroriza.
E isso é um problema para a integração europeia?
Sim. Creio que não se pode detestar a América e querer, ao mesmo tempo, a Europa. Porque, no fundo, a ideia de que a Europa é possível é a América que no-la dá. É já, de alguma maneira, uma Europa - povos diferentes, de tradições e memórias que não têm nada umas com as outras, que formam uma nação. É isto a América e é isto que tentamos fazer na Europa.
O que leva 70 por cento dos franceses a dizer que a França está em declínio? Ou, como se diz, como se explica este "malaise" de um país que é rico e, a muitos títulos, magnífico?
Isso vai mudar... O "malaise" é uma questão de memória. Há três acontecimentos recentes na nossa memória com os quais temos dificuldade em lidar. Vichy, a colonização e o Maio de 68...
Acha que podemos comparar o Maio de 68 com Vichy...
Não. Mas há uma relação difícil com o Maio de 68. Há uma parte da França que continua a pensar que foi uma coisa muito má, que os nossos males vêm daí.
Diz no seu livro, contrariando a percepção comum na Europa, que o terrorismo islâmico é uma forma de fascismo - o islamofascismo. É a mesma definição de Bush.
As pessoas na Europa crêem que a origem do terrorismo islâmico é a pobreza ou o Corão. Não é uma coisa nem outra. A sua tradição ideológica chama-se fascismo. É a sua verdadeira natureza. É uma questão política, não é uma questão religiosa.
Os americanos percebem isso melhor que nós?
Não, não creio. Eles estão mais na linha da guerra de civilizações, ou seja, uma guerra de religiões. Ora, não é nada disso, é uma batalha política contra gente que é fascista...
Porque defendem uma ideologia totalitária?
Li os fundadores dos Irmãos Muçulmanos, li os inspiradores de Komeini, li os fundadores do Partido Baas e verifiquei que as ideias que os alimentam são ideias europeias e, em grande parte, fascistas. Há também o Corão naturalmente. Mas o Corão é como todos os textos religiosos, permite várias interpretações. Se fosse só isso não estaria tão inquieto.